sábado, julho 27

“FLÁVIO x ROBERTO ANANIA”, Flávio Soares de Camargo

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Talvez não saibam, mas sou da zona rural de Mococa, pequena cidade do nordeste do Estado de São Paulo, onde fui criado entre pés de café e gado. Meu sonho era ser veterinário e, naquela época, a escola que “tinha IBOPE” era a Universidade Rural do Brasil, no Rio de Janeiro. A vida social da zona rural se mantinha na zona rural, jamais urbana. Portanto, ou se era veterinário ou agrônomo. Meus irmãos fizeram agronomia.

Um belo dia, minha mãe chegou para mim e disse que eu pensasse melhor, uma vez que meu pai resolvia os casos veterinários vendendo os bois e cavalos doentes para o açougue e nunca precisou de um veterinário. Talvez eu devesse pensar em fazer medicina. Naquela época conselho de mãe era seguido a risca e lá fui eu para Botucatu fazer medicina.

Naquela época, a cidade era um centro religioso importante e tinha um seminário gigantesco; o arcebispo colocou à disposição da Faculdade de Medicina uma ala inteira dele para dormitório dos alunos. Era um belo prédio arejado, com bosques em volta, uma bela praça de esportes e um harmônico convívio com os seminaristas nos refeitórios; leituras, missas diárias com canto gregoriano, não era obrigatório, só para os que não quisessem; para mim foi uma bela descoberta, e foi uma das opções que me passaram na cabeça, a vida eclesiástica.

A faculdade em si, para um jovem da zona rural, era um paraíso: íamos de trem, 13 km distante da cidade no meio de bosques e fazendas, ou seja, zona rural de novo. Eu estava no lugar certo.

Com o inicio da vida social na cidade, outra descoberta: Holambra 2, em Paranapanema, mandava seus filhos holandeses para Botucatu, pois era a cidade universitária mais perto. E eis que nas reuniões sociais nova descoberta, as holandesas, tímidas, divertidas, extremamente belas e, geralmente, 10 centímetros mais altas que eu. Mulher é um “animal” que se adapta a tudo e foi fácil iniciar o convívio com elas. Ou seja, eu estava no lugar certo com tudo na mão. Mas… sempre tem um mas, eu tinha um colega de classe extremamente inteligente, de origem árabe, cujo nome não importa, aluno brilhante, mas paciente psiquiátrico – tinha um TOC de perseguição extremamente perigoso para ele e para nós que convivíamos juntos. Não se podia conversar olhando nos olhos, pois ele se tornava violento e partia para agressão sem o menor aviso. Conversávamos de costas ou olhando para o chão. Um perigo! E como todo paciente com TOC, extremamente repetitivo; e eis que surge o Roberto Anania de Paula, eram da mesma cidade, Barretos, e colegas ou desafetos, ou inimigos ou até amigos. Mas não importa; em 1965, época do relato do Anania, sobre sua passagem da Paulista para a FMUSP, era a história “do café da manhã do almoço e do jantar”! Era uma situação que fugíamos, pois era uma repetição cansativa, porém eu que estava numa zona de extremo conforto, comecei a pensar e ficar incomodado com aquilo. Eu nunca havia sonhado com a FMUSP como exequível e “tava bom demais” Botucatu; mas era um martelar dia e noite que foi mudando a minha forma de pensar, e achar que eu poderia achar um outro caminho melhor.

Fiquei quieto, fui para São Paulo, fiz a matricula para o exame de transferencia que coincidia com o ano letivo e demorava uma semana de provas. Tive que pedir adiamento das provas curriculares de Botucatu, pois coincidiam, e tive que dar o motivo para tal, o que foi um erro, mas eu não poderia ficar zerado nas provas. Não me lembro bem se deram ou não o adiamento…

Terminadas as provas, voltei e encontrei um ambiente extremamente hostil, o colega com TOC fez uma campanha acirradíssima de me colocar no gelo, pois eu havia “TRAÍDO a Faculdade de Medicina de Botucatu”!!! Tive que evitar contato total com ele e com outros colegas que ficaram sob sua influencia negativa. Foi uma situação física e psicologicamente perigosa, pois a hostilidade foi total.

Uma semana depois, com o resultado das provas positivo, voltei para pegar os documentos de transferencia e fui cumprimentado por todos os professores, ficaram muito orgulhosos de um aluno de Botucatu ser aprovado numa prova curricular da FMUSP. Quanto aos colegas, evitei qualquer contato; me despedi dos padres e do Arcebispo que, naquela época, se chamava Dom Picão (estranho nome) e fui convidado para um almoço de despedida.

E fui para Sampa, me unir à 52ª turma… Nunca mais voltei para Botucatu e não me lembro de nenhum outro colega ser aprovado para a FMUSP enquanto estávamos graduando. Tivemos outros colegas, mas de outras escolas, na nossa turma, todos muito bem recebidos. Penso que o Anania fez uma política de boa vizinhança que permitiu um convívio harmônico de todos que vieram de fora.

A primeira pessoa que me cumprimentou dando as boas vindas na 52ª foi o Takanori. Vim a ter contato no mesmo dia com o Anania, e demos boas risadas sobre o colega dele de Barretos! O comentário dele foi extremamente discreto: -“Pessoa difícil”!! – e mais nada, bastante elegante da parte dele.

Mais um “causo” da a 52ª turma…

3 comments

  1. Décio Kerr Oliveira 24 julho, 2018 at 10:51 Responder

    Que delícia ler estes causos da 52ª. Parabéns e muito obrigado ao Anania e ao Flávio por nos brindar com estes minutos preciosos que ganhei na minha existência lendo estas histórias. Oi pessoal, nossa turma deve ter muitos causos que podem e devem ser lembrados!

  2. PEDRO TAKANORI SAKANE 24 julho, 2018 at 11:02 Responder

    Muito bacana o depoimento do Flávio.

    Não me lembrava de que ele vinha de Botucatu.

    O meu filho fez faculdade lá. Você tem razão numa coisa: eles se “amarram” à faculdade e têm muito orgulho dela. Devem tê-lo considerado um traidor mesmo kkkk

    Mas eu gostava visitá-lo. Botucatu ainda lembra uma cidade de interior das antigas. Pelo menos er assim até há 10 anos atras quando o meu filho se formou.

    Um grande abraço, Flavio

    Pedro Takanori Sakane

  3. Roberto Anania de Paula 25 julho, 2018 at 08:46 Responder

    Flávio, parabéns pelo relato e pela interseção das nossas “histórias”. A felicidade de conviver com todos na 52a foi e é única. Nosso sentimento fraterno e impessoal dificilmente será equiparado e muito menos superado por outras gerações. Uma centena de jovens que viveram juntos os chamados “anos dourados”de nossas vidas. Uma plêiade multinacional, multicultural, rotulados de caipiras e paulistanos, de maior ou menor situação econômica se irmanarem num momento político adverso, conflitante, estudando medicina e vivendo suas vidas . Creio que estes aspectos foram catalisadores de tudo. Gostaria que todos, relatassem seus momentos nestes mais de 55 anos vividos juntos e no mundo de cada um, para que gerações futuras, não só tomassem conhecimento destes caminhos, como também pudessem desfrutá-los e aproveita-los. Convoco todos para esta reflexão e “TODOS JUNTOS NA 52a TURMA DA FMUSP”.

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