Queridos colegas da turma 52,
Compartilho alguns fatos ocorridos ao longo deste período.
De maneira semelhante ao relatado pelo Berger, decidi fazer medicina para tratar da minha avó materna portadora de cardiopatia isquêmica que evoluiu para insuficiência cardíaca. Ela faleceu em 1974, portanto eu a acompanhei durante e após minha formação. Foi frustrante. Na época, as únicas terapêuticas disponíveis eram os digitálicos e restrição no consumo de sal. Minha avó oscilava entre ICC refratária e intoxicação digitálica.
No início dos anos 1960, persegui o objetivo de entrar na FMUSP. Por quê? Estava voltando para casa no bonde 29 Pinheiros e de repente todos os bondes pararam na Avenida Doutor Arnaldo. Qual foi o motivo? Alunos da Faculdade de Medicina estavam jogando pingue-pongue na linha do bonde. Ai eu pensei, é aqui mesmo que eu quero estudar! Após um ano de cursinho em 1963 e depois de ter sido aprovado na Santa Casa, estava eu ao pé da escada da FMUSP, a noite, esperando a divulgação do resultado do vestibular. Ai apareceu um senhor (secretário da FMUSP, pai do nosso colega, Dr. Dante Nesse) com um papel na mão e começou a ler a lista de aprovados. Foi um momento angustiante. Pensei se deveria ou não cursar a Santa Casa até que o meu nome foi lido (nonagésimo segundo lugar). Quase que não acreditei. Já era depois da meia noite. Fui para casa avisar meus pais.
No primeiro dia de aula, estava eu no porão, olhando os livros da livraria Rocca e uma menina ao meu lado também aparentemente interessada nos livros. Perguntei se ela era caloura e ela me respondeu que sim. Apresentei-me e ficamos batendo um papo. A tarde, naquele mesmo dia aconteceu aquela “assembleia” de alunos para decidir sobre o que fazer com a aluna que havia ingressado de forma irregular na faculdade. Acho que todos devem se lembrar. A tal aluna era a menina que conheci de manhã. Encurtando a história, a menina era a Marizinha do quinto ano com quem trabalhei durante muito tempo na Unidade de Choque.
Prosseguindo nos meus planos de tentar solucionar problemas de saúde, resolvi me candidatar para uma iniciação científica na bioquímica, o terror dos alunos. Falei com o professor Isaias Raw, único catedrático do nosso tempo ainda vivo que me aceitou. Trabalhava de madrugada no conjunto das químicas e ganhei uma bolsa de iniciação científica da FAPESP que havia sido criada em 1960 e implantada em 1962. Buscava meu cheque todo mês na Avenida Paulista esquina com a Brigadeiro Luiz Antônio. A primeira coisa que tive que aprender era como lavar vidraria. Não existia absolutamente nada descartável.
Não poderia deixar de mencionar meu colega e amigo Sergio Talans. Tivemos empatia um pelo outro logo nos primeiros dias de aula. Fomos responsáveis pelo departamento de excursões do CAOC. Organizamos uma excursão para o Uruguai e Argentina em 1966 da qual participaram 160 pessoas em quatro ônibus. Eu também fiz parte da Congregação de Alunos do CAOC. Um fato inusitado: um dia no segundo ano, Sergio e eu estávamos na casa dele estudando as lâminas de parasitologia em um microscópio do pai dele. Passamos a noite toda estudando. Pela manhã, fomos com o fusquinha do pai dele para a faculdade. Ao chegarmos, estranhamos que a faculdade estava fechada. Era domingo!
Pulando alguns anos, optei por residência em Clínica Médica. Fui aceito no grupo geral, o mais disputado, junto com o Patrício e o Praxedes. Como R2, trabalhei seis meses na enfermaria geral e seis meses na Unidade de Choque. Meu companheiro de plantão no PSM era o Praxedes. Nós apostávamos quem acertaria mais a localização de uma pneumonia somente com base no exame clínico. O controle era a radiografia simples de tórax, uma das poucas imagens disponíveis na época.
Em 1968, aconteceu a reforma universitária. Todas as cadeiras básicas foram transferidas para um novo instituto denominado Instituto de Ciências Biomédicas (ICB). Na faculdade foi implantado o Curso Experimental por iniciativa de um grupo de professores de visão inovadora no ensino de medicina. Em fins de 1971, fui convidado, junto com o Praxedes e o Patrício para darmos aula de clínica médica aos alunos do quarto ano deste curso. Aceitamos e nos dedicamos em tempo integral. Pela manhã, trabalhava na Unidade de Choque e em todas as tardes, dava aula de clínica para grupos de dez alunos. Esta rotina continuou durante aproximadamente oito anos quando o Curso Experimental foi extinto e juntado com o curso chamado de tradicional. Desde então a faculdade disponibiliza 175 vagas anualmente. Após o término do curso experimental, passei a dar aulas de semiologia para os alunos do terceiro ano (coisa em extinção).
Casei em dezembro de 1971 com uma colega formada na Santa Casa. Estamos felizes juntos há 47 anos.
No dia 31 de março de 1972 sofri um grave acidente na via Dutra. Eu tive uma fratura cominutiva de fêmur e minha esposa, múltiplos cortes na face. Não havia cinto de segurança nos automóveis. Fui levado ao HC. Colocaram-me um pino intramedular e fiquei um mês deitado de costas. Após a alta vinha dar aulas de cadeira de rodas.
Entre 1972 e 1977 fiz doutorado no ICB-USP (não havia na FMUSP). Em 1977, fui fazer um pós-doc nos Estados Unidos. Na volta fui credenciado como orientador da pós-graduação da FMUSP. Cliniquei durante muitos anos no HC e trabalhei em terapia intensiva. Há mais ou menos 25 anos decidi me dedicar exclusivamente à pesquisa experimental e hoje sou médico de ratos. Ao longo destes anos todos formei muitos doutores e alguns mestres e publiquei diversos trabalhos. Em 2014, quando completei setenta anos, fui aposentado compulsoriamente. Desde então faço parte de um programa disponibilizado pela USP, chamado de professor sênior. Isto permite continuar a fazer pesquisa, dar aulas e orientar alunos de pós-graduação.
Ao longo destes anos, muita coisa mudou na Casa de Arnaldo, tanto estrutural como acadêmico. Foi realizado um excelente restauro do prédio a partir de 2008, salvo engano. Todos os laboratórios, anfiteatros e demais áreas foram restaurados e modernizados. Exceto pelos belos pisos e escadarias, nossa escola não tem mais nada do que era no nosso tempo. Tudo mudou inclusive o CAOC. Não tem mais barbeiro, mesa de sinuca (“snooker”), Sr. Leonardo do mimeógrafo, departamento feminino, etc..
Recentemente escutei uma notícia sobre o lançamento de um livro cujo título é, mais ou menos, o seguinte: “Temor do Futuro”. Nenhum de nós tem este temor, porque nós já vivemos o futuro e nos adaptamos perfeitamente. Sabemos usar tecnologia de informática, tecnologia de comunicação, usar novos tratamentos e descobertas médicas, novas técnicas cirúrgicas e muito mais.
Tenho duas filhas e quatro netos, um casal de cada filha. Cada filha é um sucesso em sua área de atuação.
Estou feliz com o que eu faço e convido os colegas/amigos a me visitarem na sala 3342. Ofereço café, estacionamento, tour pela faculdade, incluindo o belo museu no quarto andar.
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Bela trajetória de vida Joel! SORTE no acidente de ter escapado com vida; e o resto, COMPETÊNCIA e boas escolhas.