O Velho Casarão da São Joaquim ou Mancha no Meu Passado, por Eduardo Berger
Sou incorrigível, reconheço… nasci com essa atração por aglutinar pessoas do meu entorno. Já me prometi parar com isso, mas acho que é mais forte do que eu. Assim é que, no geral, quase sempre, me ponho a organizar tais encontros…
Há um churrasco anual do meu grupo de reabilitação cardiovascular há “pouco tempo”… apenas uns 18 anos; também, um almoço da “confraria dos bacalhoeiros”, onde o prato é sempre o mesmo e o vinho, português é claro, é tomado “a rodo”, já há mais de 20 anos; reuniões sociais e culturais dos vizinhos do enorme condomínio onde moro; saraus e rodas de samba com meus amigos musicais e com o grupo vocal que participo; e, os mais importantes: os clássicos eventos da nossa gloriosa 52ª da FMUSP e de uma turma ainda mais antiga (!): ginásio e colégio do outrora fantástico Colégio Estadual Presidente Roosevelt (frequentei de 1956 a 1962, ou quase…)!
Ontem mesmo (30/11/2019) estive com essa turma de “amiguinhos”, no Tênis Clube Paulista, saboreando sua tradicional e “saudável” feijoada, regada a muita cerveja (bem próprio para um grupo de quase octogenários, num sábado escaldante…).
Falar do Roosevelt e daquele “velho casarão da São Joaquim”, sem se encher de orgulho, não dá! Guardadas as devidas proporções, era um ambiente de tal esplendor, que só não me deixou mais saudades, porque foi substituído pela nossa incomparável Casa de Arnaldo!
Era uma Instituição de ensino diferenciada, que “colocava” nas melhores Universidades um número expressivo de seus ex alunos. De minha turma, formada em 1962, entraram na FMUSP, sem cursinho, Antonio Pellegrini, Fausto Hironaka, Rubens Bergel e, no ano seguinte, além de mim, Roberto Cury, Lorival de Campos Novo, Pio Pereira dos Santos, Fujie Nakashima, Cilene Bastiglia… mais alguém? Na 53ª, nosso calouro, Paulo Ramos Salles. Na Escola Paulista de Medicina, na Faculdade de Medicina de Campinas (depois UNICAMP), na Santa Casa, também diversos: Neusa Wandalsen, João Guidugli, Roosevelt Cassorla, Danilo Masiero, Artur Beltrame Ribeiro, José Francisco de Souza, Wlademir Pereira da Silva, entre outros… E há diversos advogados das “Arcadas da São Francisco”, engenheiros pela Escola Politécnica, FEI, Mauá, etc. Em suma, quanta saudade do tempo da escola pública de qualidade!
O Roosevelt era realmente uma excelente casa de ensino! E era tão “enjoado”, tão “cheio de graça”, que seu grêmio estudantil tinha a sigla CAPR, “Centro Acadêmico Presidente Roosevelt”! Pode isso?! Seus professores principais eram chamados “catedráticos”! E isso, pode?! Acho que o colégio queria ser tratado de “faculdade”!
Dele, muitas histórias… Conto uma só.
Quando eu estava no terceiro ano do científico, já com quase sete anos de permanência naquela instituição, pra variar vice-presidente da comissão de formatura, eu me sentia o “dono da escola”, “inatingível”. Aí, no final do primeiro semestre, uma ocorrência que deixou uma “mancha no meu passado”…
Digamos que naquela manhã a turma estava “especialmente agitada” – sabe aqueles dias de “manchas solares”? Os “anjinhos estavam com a macaca”, bagunçando mesmo, e a mestra de biologia recém contratada, Da. Odila, uma “coroa de uns 37 anos”, interrompeu a aula e “desancou a lenha”!! Vociferou aos brados: -“Vocês são pré-universitários, prestarão exame vestibular em poucos meses… e são uns vagabundos! Não prestam atenção na matéria! Não sabem nada! Nunca serão nada na vida! Burros que são, irão puxar carroças!” Várias expressões mais sobre nossas “qualidades”, terminando por chamar-nos de “AMENTAIS” (não sei até hoje se essa palavra existe…).
Enquanto ela se esgoelava, eu fiquei de mão levantada, como quem pede a palavra – ela não me concedeu de imediato, mas pela minha insistência, berrou: -“Você é um dos principais bagunceiros, o que quer agora??” Me levantei e, sério, disse qualquer coisa assim: –“Professora, essa escola é nosso segundo lar, a senhora é nossa segunda mãe, então, em nome da turma, quero agradecer comovido o horizonte que a senhora descortina para nosso futuro; suas palavras de otimismo e encorajamento são realmente um grande estímulo para o futuro de nossas vidas. Muito Obrigado!” A tremenda e ruidosa gargalhada uníssona do “bando”, acompanhada de batidas dos pés no chão e de punhos cerrados nas carteiras, foi a reação àquela minha irônica intervenção! A mulher ficou louca!! De dedo em riste passou a dirigir palavras a este redator, dizendo que eu não prestava, que deveria vir de uma família que não prestava, que minha mãe não me dava educação… enfim, coisas que nos dias atuais dariam um belo processo pelo constrangimento a que me submeteu… hehehe. Nesse momento, mais uma vez, eu, de mão erguida, tentando fazer cara de sério, mas, certamente, com ar de deboche: -“Professora, a senhora falou tudo que acha de mim e de minha família, mas eu não vou dizer o que acho da senhora, não quero ser expulso dessa casa”! Foi demais, ela não aguentou, agarrou-se na própria roupa, tentou rasgar-se!! Agarrou sua bolsa, saiu da sala correndo e gritando um longo AAAAAHHHHH… desvairada!! Ainda corri atrás, aconselhado pelos colegas para pedir desculpas. Nem me ouviu, de nada adiantou…
Reuniu-se a congregação dos professores com a diretoria, decretaram minha expulsão – mais precisamente, em vista de meus bons antecedentes e de alguns professores me admirarem, fui “convidado a me transferir” para outro colégio estadual (o Brasílio Machado) – o próprio diretor do Roosevelt me levou, em seu automóvel, para me apresentar ao diretor do outro. Foi lá que terminei o científico, portanto sou um membro honorário da Turma do Roosevelt/62…
Termino contando algo insólito, quase inacreditável (mas podem acreditar, eu não minto!): há cerca de uns 5 ou 6 anos, estou no consultório com uma cliente bem velhinha. Ela me mostra sua endoscopia, onde se evidencia uma pequena hérnia do hiato com discreta esofagite erosiva. Como faço habitualmente, em palavras simples, explico o mecanismo da deglutição e os aspectos funcionais e anatômicos da doença do refluxo gastroesofágico. Ela me interrompe com um ar vitorioso: -“O senhor não precisa utilizar esses termos populares, pode falar cientificamente, eu sou professora de biologia, aposentada, mas posso entender bem”. Um pequeno desvio do olhar e vejo seu nome no prontuário… O.d.i.l.a!!!
-“Onde a senhora lecionou”? A pergunta sai bem lentamente de minha boca… Ela, enfática, ainda mais vitoriosa, “enche a boca” e exclama: -“Fui catedrática de Biologia no COLÉGIO ESTADUAL PRESIDENTE ROOSEVELT!!”
Segue-se pequena troca de palavras, eu lhe digo que “talvez” tenha sido seu aluno, no ano de 1962; ela quer saber onde recebi minha graduação em medicina, eu digo na USP, e ela exclama com incontida alegria e satisfação: -“Ah! Que maravilha! Que espetáculo! Os queridos alunos do meu Roosevelt, maravilhosos!! Muitos foram para a USP”!! Praticamente todos!!”
Bem, sem dúvida, era ela… só que nos avaliando de maneira bem diferente daquela de seu tempo de magistério. Evidentemente, não me “vinguei”, não fiz nada para lembrá-la do nosso passado em comum… seria muito cruel castigar uma anciã, pelo “crime daquela coroa de 37 anos”, havido quase meio século antes…
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Como outras histórias sempre muito saborosa. Parabéns amigo !!
Abraço
Agradeço sensibilizado seu comentário, estimado amigo Manoel!
E Berger
Xará , adorei a história do Roosevelt . Crônica digna de um Rubem Braga . A propósito , “amental” existe , é um neologismo usado no meio jurídico , significando um indivíduo incapaz de entender o significado de suas atitudes e o que elas podem provocar . Parabéns .
Muito grato, meu Xará querido! Você, sempre, muito gentil.
“Amental” deve ser um neologismo, então, do século XXI… em 1962, quando deu-se o fato, ainda não tinha sido criado KKKK!
Minha história é muito semelhante a sua quanto ao Roosevelt, também tive de terminar o terceiro científico em outra escola, no caso o Paulistano, devido a um atrito com a Orientadora Educacional, Dona Terezinha.
Mas foi no Roosevelt que cursei todo o ginásio e o científico entrando na faculdade direto (Administração – USP)
Uma história de minha infância… pitoresca, talvez gostem.
Início da década de ’50, aluno de uma pequena escolinha da Vila Mariana, com pomposo nome: “Educandário Brasil”.
O tal estabelecimento de ensino ocupava um modesto sobrado, na Av Conselheiro Rodrigues Alves (apenas seis salas de aula), e era da propriedade de três irmãs, solteiras, de “meia idade”, todas professoras; elas mantinham um padrão de excelência, tornando a escola muito bem conceituada e concorrida, no bairro. Uma delas, Guaraciaba (?!?!), foi minha “primeira professora”.
Ao término do 4º ano do primário, em plena comemoração do IV Centenário de São Paulo, por ter nascido num novembro, fiquei sabendo que não poderia prestar o exame para o ginásio… “não tinha a idade suficiente”. Foi quando descobri, no Largo de Moema, um tal professor Laurindo – extraordinário, um dos meus mestres inesquecíveis!! Atrás da Igreja, num casarão, com uma edícula do fundo de quintal, onde numa única sala de aula para uns 30 alunos, ele se tornou famoso, dando um curso de um ano, preparatório aos exames de admissão às escolas públicas (não era tarefa fácil obter vaga, mas os “alunos do Laurindo eram os favoritos”)
Fiz o exame para o C.E. Alberto Levy (provas realizadas no Grupo Escolar Cesar Martinez), também em Moema, junto aos trilhos do bonde que ia para a zona sul. Quando fui ver o resultado, recém completados meus 11 anos, peguei o bonde (sozinho!), ali no Instituto Biológico. Ele desceu pelos trilhos, por sobre dormentes e pedregulhos, onde hoje é a Avenida Ibirapuera, adentrando uma “jângal” (mato, só!). Poucos segundos, “Parada Ipê”, mais um pouco “Parada Moema”, meu destino. Ali, naquela selva, uma clareira já bem urbanizada com alguns trechos de ruas calçadas.
Na entrada da escola citada, estava afixada uma lista datilografada com os aprovados. Corri os olhos rapidamente, com a absoluta certeza que eu seria um deles – tinha a consciência que eu havia “acertado quase tudo” (estava muito bem preparado pelo Professor Laurindo, que tem lugar cativo no meu coração!). Decepção! Vontade de chorar… incredulidade total! Não me achei – continuei em frente ao quadro de avisos, li e reli algumas vezes, totalmente indiferente ao que acontecia à minha volta: explosões de alegria de alguns, ao lado de outros, que olhavam e partiam em silêncio para preparar-se para, quem sabe, no próximo ano…
De repente, inexplicável, notei que o terceiro colocado era um tal de Ricardo… BERGER! Sobrenome pouquíssimo comum, sobretudo nos dias de então – eu mesmo não conhecia ninguém com ele, afora meus familiares.
De imediato, dirigi-me à secretaria! Inimaginável: uma senhora atender aquele pirralho, 11 anos, sozinho, para reclamar a “sua vaga” numa escola pública! Pois bem, figura singular, ela pacientemente pegou uma cópia daquela lista, observou o ERRO, e corrigiu a falha das três letras: sai RIC, entra EDU – era eu o aprovado em 3º lugar! Ela me fez elogios, carinhos, me abraçou, quase choramos (ou choramos?) juntos…
Fui embora feliz. Minha mãe recebeu o comunicado de minha aprovação, e uma relação de escolas que eu poderia escolher. Entre elas, prontamente ela escolheu o ROOSEVELT!
Foi assim, acreditem.