quarta-feira, abril 2

A TRAJETORIA DE PIO PEREIRA DOS SANTOS, por ele mesmo (edição de Eduardo Berger)

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NOTA DO EDITOR

 

Pio Pereira dos Santos foi aprovado no mais concorrido exame vestibular do País: o da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, no ano de 1964. Ou seja, seu curso médico iniciou-se algumas semanas antes do inicio do período da ditadura militar em nosso país. Foi um aluno brilhante, mas não pode se graduar na FMUSP: quando estava no último ano, foi obrigado a “sumir”…

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A história contada são “causos”.

Verdades e imaginações se cruzam, completando a narrativa.

 

 

Eu “sumi” em fevereiro de 1969.

Vivi em São Paulo por dois meses com apoio de amigos.
Fui para o Rio de Janeiro, onde fiquei daqui e dali, apoiado por amigos antigos e recentes, pessoas que nunca vira antes.

Tinha ilusão de que poderia voltar para a vida anterior.
Em junho me convenci de que não seria possível.
Sair do país, única solução para o meu plano de vida. Terminar o meu curso, etc.

 

 

 

URUGUAI (julho/1969)

Buscar contatos que pudessem me apoiar.

Na época, lá viviam muitos brasileiros ligados ao governo de Jango Goulart, deposto pelo golpe militar de 64. Pensava por aí ficar uns tempos e retornar ao Brasil – ledo engano… Vivia semiclandestino.

Em setembro pedi asilo político. Assim poderia ter uma vida legal e, principalmente, continuar meus estudos. Trabalhei numa tipografia, já antiquada para a época, trabalhei com um paraguaio recuperando a prata das radiografias (aí conheci outra versão da guerra Brasil-Paraguai).

Em janeiro de 1970 fui procurar a secretaria da Faculdade de Medicina. O secretário, prof. Carlevaro, foi muito atencioso. Eu tinha somente uma Certidão de Nascimento como documento. Ele tomou as seguintes decisões:
1. Enviou ofício à FMUSP solicitando meu histórico escolar.
2. Enviou-me a uma comissão de três residentes para avaliar o meu conhecimento escolar. Se positivo, eu seria integrado à turma de internos, sempre acompanhado desses residentes.
3. Se aprovado no internato e se recebido o histórico escolar com conformidade ao meu relato, receberia o título de médico.

Legal! Velhos hospitais. Excelentes professores. Clínica apoiada intensamente na semiótica, etc. Conclui o curso e aprovação nos exames.

Regularmente, procurava saber do meu histórico escolar. Nada! Novo pedido… Nada!

No final do ano (1970), o Prof. Carlevaro me comunicou que frente à ausência de qualquer resposta da FMUSP, eu não poderia ser diplomado. Diante dessa situação e, sabedor de que no Chile poderia continuar meus estudos, decidi ir para lá.

 

CHILE (1º/janeiro/1971)

Primeiro de janeiro de 1971, descia na rodoviária de Santiago: procurar apoio e me instalar.

Reitoria da Universidade de Chile – na minha situação, o roteiro era:
1. Passar por uma série de provas referentes às disciplinas dos cinco primeiros anos. Duraram uma semana. Se aprovado, seria matriculado no internato. No Chile, o internato era de dois anos.
2. A Universidade solicitou via ofício o meu histórico escolar à FMUSP. Início de 1971.
3. Se concluído com êxito o internato e recebido o histórico escolar, seria diplomado pela Universidade.
4. Para me manter, e fazendo parte do internato, trabalhei num Posto de Saúde sob supervisão.

Regularmente procurava saber sobre o meu currículo escolar. Nada!

Reforço do pedido. A preocupação aumentava.

No final de 1972 (ou início de 1973), a secretaria da Universidade me informou que o meu histórico escolar havia chegado. Valeu uma boa cerveja!

Nunca enviei pedido a FMUSP, solicitando o meu histórico escolar. Nunca tive contato com o Dr. Dante Nese, então secretário da Faculdade. Em nenhuma folha do histórico leva rubrica do Dr. Dante.  Já de volta ao Brasil, nos anos oitenta, conversando sobre essa questão, recebi a informação de que o Dr. Dante no final de 1972 já não era mais secretário, motivo de doença.

Em março de 1973, enfim, recebi o meu diploma de Médico Cirurgião pela Universidade de Chile.
Assim, sou diplomado no Chile, após 8 anos de estudos.
Vida nova!

A partir de abril de 1973, eu e mais três colegas fomos trabalhar no hospital de Bulnes, cidade de vinte mil habitantes no sul do Chile. Eu assumi a pediatria, no período da tarde.
Vivi numa pequena cidade distante alguns quilômetros, em Quillon, onde havia um centro de saúde. Aí trabalhava no período matutino. Único médico.
Também atendia nos três postos rurais em rodízio.
Vida dedicada à medicina, mas boas comidas regadas de vinho colonial. Região vinícola. Recém casado. Pensamentos brilhantes. Horizonte sombrio.

 Militares cercam o Palácio de La Moneda, em 11 de setembro de 1973

Militares cercam o Palácio de La Moneda, em 11 de setembro de 1973

Setembro/73: golpe militar.

Situação difícil. Estrangeiro. Comparecimento obrigatório no quartel militar em Chillan, capital da provincial. Interrogatórios. Decisão: prisão domiciliar, mantendo o trabalho. Rotina rompida por duas vezes, devido ao comparecimento obrigatório ao quartel policial em Bulnes.
Na segunda vez fiquei detido por três dias. Acusação: ter levado, na ambulância, duas crianças para casa de familiares numa das idas a um posto rural. Os pais tinham fugido. Crianças ficaram sem amparo. Prisão como forma de pressionar os pais a se entregarem. Sucesso absoluto.

Depois de um mês decidi ir-me Chile. Com muita pesar.

Munido de um salvo conduto do capitão de Bulnes, em meados de outubro cheguei em Santiago.

Fui levando para um centro de refugiados estrangeiros, organizado e administrado pelo Conselho das Igrejas e ONU. Após três meses de vida agitada e comunitária forçada, mas rica em ensinamentos, embarquei com minha companheira num avião militar canadense.

Sempre procurei viver a vida possível e dela extrair os ensinamentos.
Quero compartir dois ensinamentos convividos durante a curta prisão em Bulnes: a crueldade gratuita do ser humano! A aceitação da opressão para evitar males piores. Um dia falaremos disso…

CANADÁ (12/janeiro/1974)

Toronto –  via, ao vivo, a natureza branca de neve do meu quarto paísImagens de Canadá Inverno | Baixe imagens gratuitas na Unsplash

Após uma semana partimos para Montreal, nosso destino programado. Viagem calma e tranquila de trem, acho que foram 6 horas.
Éramos oito brasileiros. Eu e minha esposa, um jovem que conheceremos no refúgio em Santiago e uma família (pais e três filhos pequenos) que conheceramos no avião.
Primeira e bela surpresa: ao descer do vagão avistamos uma jovem senhora com uma placa: “Eu sou Denise”. Era a nossa porta de entrada para nova etapa da vida. Foi nossa referência em muitos sentidos até a sua morte há 2 anos.

Canadá, país de imigrantes, regras bem estabelecidas. Não há desvios.
Primeiro aprender a língua. Lá vamos estudar francês, curso integral de 6 meses.
Em abril houve uma sessão do exame para médicos imigrantes (ECFMG?), em francês, válido para a província do Quebec. Era aprovar ou aprovar. Passei.
Agora procurar vaga para, mais uma vez, fazer o internato. A priori para o ano letivo que começaria em julho de 1975. Até agosto eu tinha uma bolsa de 220 dólares mensais para fazer o curso de francês, e ser aprovado, para ter o certificado de proficiência de francês, necessário na busca de emprego mais qualificado.
Que fazer após o término do curso de francês?

As dificuldades do hoje não davam espaço para dúvidas do amanhã.

Muitas coisas novas. Mundo branco, árvores aparentemente secas, pouca manifestação de vida. Abril inicia uma radical mudança. O verde surge soberano por toda parte. Verde limpo, brilhante. Flores e animais.
Viver e sentir a pulsão vital inspira a sensação de potência.
Em agosto de 1974, consigo uma vaga de internato num hospital ligado à Universidade Mcgil, de língua inglesa.
Aos trancos e barrancos completei o internato. Dividi a quitinete com o quarto na residência do hospital.
Em novembro nasceu o meu filho.
Minha esposa, após uns poucos meses, ingressou num hospital francês como auxiliar de enfermagem (ela tinha feito o curso aí no Hospital das Clínicas).
A vida estava mais equacionada. Estudando, renda suficiente para o básico vital, integração na nova sociedade e esperando o dia da volta para o Brasil.

Em meados de 1975, fiz as provas para a Residência em Pediatria. Fui aprovado. Universidade de Montreal, Hospital Sainte Justine.
Em agosto, terminei o internato. Agora estava apto para fazer o exame nacional para obter a Licença Médica (igual o exame da OAB), sem a qual não poderia exercer a profissão de médico. O exame realizado na capital, Ottawa, em outubro.
Aprovei. Com o certificado, me inscrevi no Conselho da Província de Quebec. Era agora um médico regularmente titulado e autorizado.
Continuei a residência de Pediatria. Conclui os dois primeiros anos, e aprovei em todas as provas. Lá eram quatro anos. Após completar os dois primeiros anos, era facultado fazer os exames de conhecimentos teóricos para a obtenção do título. Quando completado os quatro anos, fazia-se os exames finais, com enfoque maior nas habilidades práticas.
Aprovei os exames teóricos. Segundo semestre de 1977.
Minha esposa superava os obstáculos para a sua integração. Curso técnico de enfermagem na área de assistência pré-natal. Fluência em francês, etc.
As variáveis básicas da vida ordinária, equacionadas.

O pertencimento a uma fração social: esquerda/socialista (nas definições sempre limitantes e mesmo ambíguas) era fator importante.

Quando cheguei em Montreal, o Adura (nota do editor: José Antonio Adura Miranda, outro acadêmico que iniciou o curso médico na FMUSP em 1964 e que, igualmente, não se graduou por perseguição política) já estava radicado lá. Não me lembro, ou nunca soube precisamente quando chegou.
Lembro que tinha clínica num bairro em que vivia grande população portuguesa. No intervalo em que deixei a residência e a mudança para o interior, atendi na clínica dele. Pouco tempo.
O meu contato com ele foi pequeno. Tempo escasso e atividades diferentes.
Estive no apartamento dele pouquíssimas vezes. Tempos depois, quando eu já estava em Moçambique, soube da sua mudança para a Califórnia.

Meados de 1977 tomamos a decisão de trabalhar em Angola ou Moçambique, como “coperantes”, através de ONG ligadas às universidades.
Cancelei a inscrição na residência de pediatria. Fui trabalhar num centro de saúde, numa pequena cidade distante uns 50 km de Montreal. Experiência muito rica. Éramos três médicos: um imigrante árabe jovem, um coronel vietnamita do sul e eu. Fiquei cuidando do atendimento da área de pediatria.

Em agosto/77, nascia a nossa filha.

MOÇAMBIQUE (julho/1978)

Partimos, os quatro, para o meu quinto país, Moçambique.
Gostei muito da estadia no Canadá. Aprendi muito da área profissional e reforçou a ideia de que a vida é simplesmente viver.

Início julho/78, após um pequeno container abarrotado de bugiganga, em que predominavam livros de medicina, ter sido despachado, embarcamos os quatro num avião rumo ao leste. Ou melhor ao ponto especialmente neutro, Londres. Objetivo: encontrar um professor de medicina tropical e receber orientações técnicas e perambular feito turista.

A seguir, Paris. Encontrar meu irmão e amigos da diáspora brasileira de então.
Uma semana em Roma. Encontrar um professor de medicina e receber orientações técnicas . Ele trabalhara em vários países africanos, inclusive Moçambique.
Cinco dias de turismo excelente. Ver a Capela Sistina sem pressão, etc.

Roma – Maputo, longa viagem.
Moçambique completava o seu terceiro ano como país independente.
A opção por Moçambique estava inserida no caminho desde 1965, quando troquei a opção de ser um “pesquisador/cientista” para trabalhar na assistência à saúde das pessoas que necessitavam e não podiam pagar.
Maputo: dois anos de atividades clínicas intensivas. Integrava a equipe de pediatria do Hospital Central. Um conjunto de prédios onde funcionavam as diferentes clínicas. Unidades antigas e outras novas.
A equipe era comandada por uma professora inglesa (membro do Conselho Britânico), excelente criatura humana e de grande conhecimentos e habilidades clínicas, três pediatras italianos, uma francesa, um holandês, um cubano, um chileno, dois russos e três residentes moçambicanos.
Tarefas: assistência na enfermaria geral (em torno de 1.000 altas mensais), enfermaria de desnutridos graves (+100 leitos), berçário de RN com algum tipo de agravo (400 altas mês), PS de pediatria, (após o atendimento no PS geral) (em torno de 2.000/mês), ambulatório de especialidades pediátricas. E para completar, aulas – assistência docente aos alunos do curso de medicina e do curso de “técnicos de medicina”. Eu lembro desses dados pois nunca deixei de lado o que sabia e gostava: contar, calcular, etc. Era responsável por fazer as poucas e básicas estatísticas do setor.
Dois anos de muito trabalho e aprendizado.
Vi uma variedade enorme de doenças e anormalidades.

Concluo que podia ter sido melhor, mas sinto-me realizado.
De volta ao Brasil e reencontrando aqui a professora, fui convidado para fazer pós em Londres. Decidi que após 11 anos rodando pelo mundo, deveria permanecer em casa.
A saída de Moçambique, logo após a anistia, foi decisão difícil. Tínhamos o nosso espaço em Moçambique e no Canadá.
Minha esposa fora chamada pelo Ministro da Saúde para que permanecera. Fizera um excelente trabalho organizando a assistência materno-infantil.
Ficar era consolidar raízes. O chamamento da casa materna foi mais forte.

Agosto de 1980, terminado o contrato, volta para casa.

As lições aprendidas em Moçambique foram muitas. Destaco o que chamei “síndrome da incompetência anunciada” (um dia podemos conversar sobre esta divagação), os limites do sofrimento humano, e o choque cultural que sacudiu o meu racismo estrutural.

BRASIL (1980)

Em 1969 deixei, quase sozinho, a terrinha. Quase porque a imagem de alguém seguia no pensamento. Em 1980, voltava, agora eu já era quatro.

Primeira tarefa: acertar a situação profissional.

Fui morar em Campinas. Entrei com a documentação na Unicamp. Pouco tempo depois, diploma revalidado. Cadastro no CREMESP feito.

Quando decidimos voltar para o Brasil, duas cidades foram excluídas como possíveis moradia. São Paulo e Rio de Janeiro.
A decisão por Campinas deu-se por uma coincidência. Pouco antes de partir de Moçambique, tinha ido buscar minha esposa no serviço. Ela fazia a apresentação do trabalho para um consultor da OMS. Este consultor fora meu professor na clínica de obstetrícia no Chile. Tínhamos bom relacionamento. Conversamos. E ao saber que logo voltaríamos, sugeriu que fôssemos para Campinas, pois ele teria uma vaga de trabalho para minha esposa. Era professor da Unicamp. E assim em setembro estávamos morando em Campinas.

Minha esposa, pouco depois, trabalhava nos projetos de pesquisa do Prof. Aníbal Fagundes.
Encontrei na Unicamp o Nelson Rodrigues, agora professor do Departamento de Medicina Preventiva. Grande amigo desde o segundo ano do curso. Me apoiou na minha inserção na nova etapa da vida.
Dificuldades sempre aparecem.
Fiz entrevista para médico na prefeitura de Campinas. Pessoal do dito campo da esquerda. Acharam que minhas ideias sobre organização de serviço de saúde não eram ajustáveis com a deles. Também não tive espaço como médico no ambulatório do departamento da pediatria.
Em 1969 saí do Brasil com o dinheiro do meu fusca, presente do meu…… Em 1980 voltava com dinheiro para comprar um fusca e pagar as contas por alguns meses.

Era urgente um trampo. Um parêntese no caminho.
Resultado: fui trabalhar nos hospitais de Jundiaí onde trabalhara em 1968. Primeiro dia. Conversa com um dos donos. Indica ele, que deveria fazer dois prontuários para cada paciente. Um real para o tratamento do paciente, e outro com quadro clínico exacerbado, para apresentar para o INAMPS para pagamento. Tal qual em 68. Recusa total. Solução a mesma de 68. Eles faziam prontuários falsos.

Em janeiro de 1981 fui trabalhar em Limeira. Implantar um serviço de saúde dentro da Autarquia Municipal de Serviço Social. Volta ao caminho inicial, porém sobre o que fazer não tinha experiência. Buscar apoio.
Elaborar uma proposta de atenção básica para o município. Apresentar e convencer os vereadores de que aquilo era bom. Necessitava do ok da Câmara. Afinal seria um trabalho do poder público. Prefeito do partido do Maluf (receptivo), líder do prefeito, dentista que ainda acreditava que a fluoretação da água era uma “estratégia dos comunistas soviéticos para dominar o mundo”, etc. Convencidos, plano aprovado. Posso dizer que o serviço, muito pequeno e marginal, em nada perdia para o futuro PSF e PACS. No final, tínhamos seis unidades e um centro de recuperação nutricional (a joia da coroa).
Esta experiência foi muito rica. Conheci muitos que elaboravam e implementavam as bases do futuro SUS. Fiz o curso de Saúde Pública na Unicamp.

1982. Eleições municipais. Serviço de Saúde municipal em evidência.
Ampliei a proposta para uma futura gestão da oposição (PMDB ou PT). O principal candidato do PMDB queria exclusividade. Pedido negado.
Saúde era uma importante pauta social e política na época.

1983,  janeiro. Novo prefeito (PMDB, que recebera o não), nas primeiras medidas: demissão minha e da minha esposa…
Etapa finalizada. Buscar outra porta do caminho.

Piracicaba/UNIMEP. Assistência ao público da universidade (professores, estudantes e funcionários) e elaborar e implantar um serviço de saúde comunitário para universidade/igreja.
Completava o ganha pão com trabalho na esfera privada.

1984, trabalho na Unimep sem maiores perspectivas. Novas aberturas. Para mim, trabalhar num projeto financiado pelo Banco Mundial em Manaus, via OPAS. Para minha esposa trabalho na área de assistência à saúde da Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá. Meu trabalho implicava passar um mês em Manaus, intercalando duas semanas em casa.
Abriu uma vaga para médico pediatra no Hospital da Universidade, em Cuiabá. Primeiro colocado nas provas escritas. Não consegui a pontuação necessária nas provas práticas. Mais de um ano depois, alguém nos procura e diz que minha desclassificação foi baseada nos antecedentes políticos. Se dispunha a testemunhar a meu favor, etc. O caminhar seguia. Pensei que não valia a pena.
Minha esposa prestara o vestibular na área de pedagogia. Estudava e trabalhava.

1984, segundo semestre, concurso para médico sanitarista do governo de São Paulo. Aprovei. Escolhi uma vaga na Regional de Campinas. Ampliava o âmbito de ação. Aprendi muito. Ampliei as atividades e, agora, tinha o espaço de trabalho reconhecido pela comunidade interna.
Desempenhei as funções de diretor da regional de meados de 86 até fim de 87, quando nos mudamos para Florianópolis.

Participei ativamente das discussões dos temas da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986.
Como diretor regional participei da criação das estruturas de integração dos serviços públicos de saúde no âmbito do SUDS. Os primeiros processos de transferências de serviços estaduais para os municípios no país foram os da região de Campinas. Eu coordenava.
Minha esposa conseguira a transferência de estudante para a Unicamp. Em 1985, ela é readmitida no INCRA, ancorada na lei da anistia.

Crianças crescendo, grande e sólido círculo de amigos… Eis que chega a roda viva…

1987, junho. Minha esposa é transferida para o Incra de Santa Catarina. Em julho, os filhos aportam em Florianópolis.
Consolida a ideia de sentar raízes num novo lugar. Em dezembro, respiro os ares da nova terra.
Pela primeira vez compramos uma pequena casa. Sinal de estabilidade? Inicio trabalhando na Superintendência do INAMPS. Normalizar e ampliar o financiamento dos ambulatórios médicos dos sindicatos dos trabalhadores.

Em 1988, início do processo de integração funcional dos serviços de saúde federais e estaduais, dentro do SUDS. Minha experiência em Campinas foi importante – agora, como assessor do superintendente do INAMPS.
Em agosto se inicia o processo de municipalização. Coordenei o processo. Antes das diretrizes constitucionais e muito antes das leis normatizadoras (leis 8080 e 8142), as bases do futuro SUS estavam sendo estruturadas em Santa Catarina.

1991, concurso para pediatra do hospital infantil do governo do estado. Aprovei. Volto a ter um emprego com muita estabilidade. Por decisão administrativa, sou transferido para a Secretaria. Continuar o trabalho de municipalização.

1992, curso de planejamento de sistemas de saúde na Fiocruz.

1993 (meados) e 1994, trabalho na Prefeitura de Florianópolis, desenvolvimento do SUS do municipal.

1995 – 1998, atuo como Diretor de Planejamento da Secretaria de Estado da Saúde.

Esses dez anos, dedicados à estruturação do SUS em Santa Catarina, me foram muito instrutivos, conheci muita gente, aprendi muito e ao que parece cheguei a ser uma referência no Estado.

2001-02, atuei na Prefeitura de Blumenau: organizar e ampliar o atenção básica.

2003-2010, atuação como gerente de atenção básica/primária da SES.

Penso que fui um bom funcionário público. Estive na linha de frente na criação do SUS, junto de muitas outras pessoas de todos os matizes políticos.

Aprendi que o consenso sobre o concreto/objetivo é muito mais fácil do que sobre situações imprecisas.
A solidariedade é gostosa/prazerosa. O egoísmo exige fuga, isolamento. Faz mal.

Hoje aposentado, continuo gostando de viver. Nem tudo são flores, mas existem vinhos e … os sorrisos amigos.

8 comments

  1. Antonio Leandro Francischinelli 5 dezembro, 2024 at 10:34 Responder

    Pio
    Bom saber o verdadeiro relato.
    Parabéns pela resiliência. O amor pela medicina esteve sempre presente.

  2. Domingos Lalaina Jr 5 dezembro, 2024 at 10:35 Responder

    Pio, para todos nós, quanta coisa lamentável no passado ,,,
    Que lembremos do que foi bom, pois só a lembrança é o que verdadeiramente temos.

  3. ROBERTO ANANIA DE PAULA 5 dezembro, 2024 at 10:39 Responder

    Querido Pio.
    Fomos da mesma panela do internato e de imediato moradores do prédio da residência.
    Iniciamos pelo PSM e ao fim da jornada íamos para a lá.
    No início de fevereiro, o porteiro me procurou a respeito de um jovem que estava à sua procura. Não encontrando Vc no quarto, o jovem me disse: “Quando o Pio chegar diga a ele que sua Mãe está muito doente” .
    Cansado, esperei até as 23,30 hrs sua chegada e transmiti o recado.
    Fiquei uns 30 anos sem vê-lo. Nos primeiros dias a doença da Sra. sua mãe justificava a ausência. Durante anos, lamentei o fato de não ter conversado com Vc. Mas na ocasião, Vc prontamente me agradeceu e desapareceu!
    Agora diante do seu relato de vida, minha solidariedade total. Não sei se naquela ocasião fui o algoz da sua desgraça ou o determinante da sua sobrevivência.
    Até um dia destes caro amigo e colega honorário da 52a!

  4. Eduardo Verani 5 março, 2025 at 12:05 Responder

    Uma verdadeira “EpoPIOpeia”. Que luta, Pio, que vida intensa, sofrida, mas que deve ter valido a pena, por ter seguido seus ideais.
    Lembro-me de uma visita que você me fez um dia, em meu consultório; você estava talvez contratado pela Unimep, mas não nos falamos mais.
    Um grande abraço!

  5. roberto cury 6 março, 2025 at 19:51 Responder

    Caro Pio, Meu profundo respeito pela perseverança, apesar de todas as dificuldades e angustias existenciais, corporais, ideológicas… confesso uma pequena inveja até, pela odisseia vivida, com,afinal, destarte todas as incertesas e dificuldades do percurso, você teve uma vida gloriosa concernente ao teus ideais, e merecidamente , receba meus mais fortes aplausos e admiração!!

  6. Décio Kerr Oliveira 9 março, 2025 at 14:05 Responder

    Querido Pio, um dia, fazendo alguma compra pro meu fusca lá na Av. Duque de Caxias, encontrei com você na calçada e senti o seu desconforto com a minha presença. Estranhei a sua reação e agora lendo a sua historia fica bem explicado os motivos do costrangimento. Sua historia de vida precisa ser conhecida pelas novas gerações. Parabéns.

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