quarta-feira, janeiro 15

A TRAJETORIA DE PIO PEREIRA DOS SANTOS, por ele mesmo (edição de Eduardo Berger)

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A história contada são “causos”.

Verdades e imaginações se cruzam, completando a narrativa.

Eu “sumi” em fevereiro de 1969.
Vivi em São Paulo por dois meses com apoio de amigos.
Fui para o Rio de Janeiro, onde fiquei daqui e dali, apoiado por amigos antigos e recentes, pessoas que nunca vira antes.
Tinha ilusão de que poderia voltar para a vida anterior.
Em junho me convenci de que não seria possível.
Sair do país, única solução para o meu plano de vida. Terminar o meu curso, etc.

Uruguai. Lá cheguei em meados de julho. Buscar contatos que pudessem me apoiar. Na época, lá viviam muitos brasileiros ligados ao governo de Jango Goulart, deposto pelo golpe militar de 64. Pensava por aí ficar uns tempos e retornar ao Brasil – ledo engano… Vivia semiclandestino.
Em setembro pedi asilo político. Assim poderia ter uma vida legal e, principalmente, continuar meus estudos.
Trabalhei numa tipografia, já antiquada para a época, trabalhei com um paraguaio recuperando a prata das radiografias (aí conheci outra versão da guerra Brasil-Paraguai).

Em janeiro de 1970 fui procurar a secretaria da Faculdade de Medicina. O secretário, prof. Carlevaro, foi muito atencioso. Eu tinha somente uma Certidão de Nascimento como documento. Ele tomou as seguintes decisões:
1. Enviou ofício à FMUSP solicitando meu histórico escolar.
2. Enviou-me a uma comissão de três residentes para avaliar o meu conhecimento escolar. Se positivo, eu seria integrado à turma de internos, sempre acompanhado desses residentes.
3. Se aprovado no internato e se recebido o histórico escolar com conformidade ao meu relato, receberia o título de médico.

Legal! Velhos hospitais. Excelentes professores. Clínica apoiada intensamente na semiótica, etc. Conclui o curso e aprovação nos exames.
Regularmente, procurava saber do meu histórico escolar. Nada! Novo pedido… Nada!

No final do ano (1970), o Prof. Carlevaro me comunicou que frente à ausência de qualquer resposta da FMUSP, eu não poderia ser diplomado. Diante dessa situação e, sabedor de que no Chile poderia continuar meus estudos, decidi ir para lá. Dezembro de 1970.

Primeiro de janeiro de 1971, descia na rodoviária de Santiago: procurar apoio e me instalar.

Reitoria da Universidade de Chile – na minha situação, o roteiro era:
1. Passar por uma série de provas referentes às disciplinas dos cinco primeiros anos. Duraram uma semana. Se aprovado, seria matriculado no internato. No Chile, o internato era de dois anos.
2. A Universidade solicitou via ofício o meu histórico escolar à FMUSP. Início de 1971.
3. Se concluído com êxito o internato e recebido o histórico escolar, seria diplomado pela Universidade.
4. Para me manter e fazendo parte do internato, trabalhei num Posto de Saúde sob supervisão.

Regularmente procurava saber sobre o meu currículo escolar. Nada!

Reforço do pedido. A preocupação aumentava.

No final de 1972 (ou início de 1973), a secretaria da Universidade me informou que o meu histórico escolar havia chegado. Valeu uma boa cerveja!
Em março de 1973, enfim, recebi o meu diploma de Médico Cirurgião pela Universidade de Chile.
Assim, sou diplomado no Chile, após 8 anos de estudos.
Vida nova!

A partir de abril de 1973, eu e mais três colegas fomos trabalhar no hospital de Bulnes, cidade de vinte mil habitantes no sul do Chile. Eu assumi a pediatria, no período da tarde.
Vivi numa pequena cidade distante alguns quilômetros, em Quillon, onde havia um centro de saúde. Aí trabalhava no período matutino. Único médico.
Também atendia nos três postos rurais em rodízio.
Vida dedicada à medicina, mas boas comidas regadas de vinho colonial. Região vinícola. Recém casado. Pensamentos brilhantes. Horizonte sombrio.

 Militares cercam o Palácio de La Moneda, em 11 de setembro de 1973

Militares cercam o Palácio de La Moneda, em 11 de setembro de 1973

Setembro/73: golpe militar. Situação difícil. Estrangeiro. Comparecimento obrigatório no quartel militar em Chillan, capital da provincial. Interrogatórios. Decisão: prisão domiciliar, mantendo o trabalho. Rotina rompida por duas vezes, devido ao comparecimento obrigatório ao quartel policial em Bulnes.
Na segunda vez fiquei detido por três dias. Acusação: ter levado na ambulância duas crianças para casa de familiares numa das idas a um posto rural. Os pais tinham fugido. Crianças ficaram sem amparo. Prisão como forma de pressionar os pais a se entregarem. Sucesso absoluto.

Depois de um mês decidi ir-me Chile. Com muita pesar. Munido de um salvo conduto do capitão de Bulnes, em meados de outubro cheguei em Santiago.

Fui levando para um centro de refugiados estrangeiros, organizado e administrado pelo Conselho das Igrejas e ONU. Após três meses de vida agitada e comunitária forçada, mas rica em ensinamentos, embarquei com minha companheira num avião militar canadense. Doze de janeiro de 1974, via ao vivo a natureza branca de neve do meu quarto país.

Sempre procurei viver a vida possível e dela extrair os ensinamentos.
Quero compartir dois ensinamentos convividos durante a curta prisão em Bulnes: a crueldade gratuita do ser humano! A aceitação da opressão para evitar males piores. Um dia falaremos disso…

continua…

 

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Nunca enviei pedido a FMUSP, solicitando o meu histórico escolar. Nunca tive contato com o Dr. Dante Nese, então secretário da Faculdade. Em nenhuma folha do histórico leva rubrica do Dr. Dante. Já de volta ao Brasil, nos anos oitenta, conversando sobre essa questão, recebi a informação de que o Dr. Dante no final de 1972 já não era mais secretário, motivo de doença.

A SER CONTINUADA…

 

5 comments

  1. Antonio Leandro Francischinelli 5 dezembro, 2024 at 10:34 Responder

    Pio
    Bom saber o verdadeiro relato.
    Parabéns pela resiliência. O amor pela medicina esteve sempre presente.

  2. Domingos Lalaina Jr 5 dezembro, 2024 at 10:35 Responder

    Pio, para todos nós, quanta coisa lamentável no passado ,,,
    Que lembremos do que foi bom, pois só a lembrança é o que verdadeiramente temos.

  3. ROBERTO ANANIA DE PAULA 5 dezembro, 2024 at 10:39 Responder

    Querido Pio.
    Fomos da mesma panela do internato e de imediato moradores do prédio da residência.
    Iniciamos pelo PSM e ao fim da jornada íamos para a lá.
    No início de fevereiro, o porteiro me procurou a respeito de um jovem que estava à sua procura. Não encontrando Vc no quarto, o jovem me disse: “Quando o Pio chegar diga a ele que sua Mãe está muito doente” .
    Cansado, esperei até as 23,30 hrs sua chegada e transmiti o recado.
    Fiquei uns 30 anos sem vê-lo. Nos primeiros dias a doença da Sra. sua mãe justificava a ausência. Durante anos, lamentei o fato de não ter conversado com Vc. Mas na ocasião, Vc prontamente me agradeceu e desapareceu!
    Agora diante do seu relato de vida, minha solidariedade total. Não sei se naquela ocasião fui o algoz da sua desgraça ou o determinante da sua sobrevivência.
    Até um dia destes caro amigo e colega honorário da 52a!

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