sábado, julho 27

ALMA NÁUTICA! por Flavio Soares de Camargo

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Difícil explicar para quem não teve um barco, dizer que ele tem alma!

Um avião pela brevidade de suas viagens, é sempre uma página virada, aquela “rapidinha” que não deixa lembrança alguma, até a fisionomia da parceira a gente esquece.. mas um barco é poesia pura!

Esta ESTÓRIA é de minha primeira lancha, herança familiar, que veio para minhas mãos por uma divida de meu sogro ao comprar uma colheitadeira de milho. Faltou grana para uma das prestações, a medicina pagou e ela veio para mim. Se eu fizer a conversão do que paguei para o que vale hoje, foi um suicídio financeiro; mas foi, na realidade, uma redenção duradoura pela poesia que veio junto. Quem faz contas nas despesas do lazer, não se diverte!

Trata-se da minha primeira lancha, a CARONA. Caio, Rosa, Nanete e Alcindo, esta somatória deu o nome de CARONA, eram os sócios dela; compraram-na de um amigo que naufragou com a mesma no mar no inicio da década de 70. Tratava-se de uma finíssima FERRARI, de 18 pés ano 1950. Toda de cedro naval e, como toda lancha de madeira, navegava maravilhosamente bem! Com seu possante motor, de 200 HP esportivo Johnson de 6 carburadores, um para cada cilindro, um verdadeiro bólido. Motor de alumínio extremamente leve e compacto. Um motor moderno, o som dele acelerando é realmente o uivo de uma FERRARI. Musica pura!

Ultimamente, eu usava a CARONA ocasionalmente para algumas pescarias e piqueniques na represa de IGARATÁ, pois tinha comprado a RAYBAN, uma MAGNUM 23 pés, de fibra, barco elegante, rápido, leve, e resolvi vender a CARONA! Já estava velhinha, era para desocupar a marina. Serviu-me fielmente como uma amada dedicada até o ultimo dia, até o último peixe pescado e até o ultimo piquenique. Boa de namorar no banco de trás, nas pequenas baias escondidas. Valente garota, além de fiel pacas, pois nunca me deixou na mão. Subiu as corredeiras do Rio Piracicaba puxando um barco que havia naufragado, com toda minha tripulação mais os náufragos, por mais de 50 km rio acima, em corredeiras de arrepiar os cabelos. Seu valente V6 urrando, não importando com o que desse ou viesse pela frente ou a carga que estava pesando em seu lombo, nos levou de volta para casa. Na represa de Barra Bonita confluência do Piracicaba com o Tietê, com 30 km de largura, durante uma feroz tempestade num cair de tarde, engoliu uma onda pela proa que varreu-a até a popa. Nem deu bola, foi em frente com a bomba de porão zoando e se livrando do excesso de carga. Foram duas horas de batalha sem trégua noite a dentro até chegarmos a bom porto.

Numa linda excursão, com os meus dois irmãos e mais dois sobrinhos, fomos de Piracicaba até Barra Bonita comer um delicioso pintado no Hotel Beira Rio, após descer a eclusa. Naquela noite de lua cheia, dava para vê-la no píer do hotel, bem quieta e parecendo feliz por ter-nos trazido para curtir aquele momento mágico.

Agora, já suas rugas qual tecido frouxo estavam deixando passar muita água, um quase naufrágio me deixou inseguro sobre seus predicados. Afinal 70 anos são 70 anos . Qual amante infiel anunciei sua venda; ninguém a quis, nem um telefonema marcando hora ou pedindo um encontro. Quatro meses esperando por alguém, e nada. Estava bonita, enfeitada, mandei-a para polimento, motor brilhando, qual dama esperançosa, coloquei-a num local privilegiado onde pudesse ser melhor vista. Muitos passaram, mas nem um simples olhar desejoso ocorreu, alguns curiosos ainda comentaram: -“que esquisito um barco de madeira”.

Como todo homem, comecei a sair com a outra, mais espaçosa, moderna, últimos recursos de tecnologia, chique no “úrtimo”, perfil agressivo, mais para uma flecha que para um barco.

Na última vez que fui à marina, o dono virou-se para mim e perguntou se eu ia continuar pagando a estadia ou se eu iria mandar o barco para o lixo e venderia o motor! Fiquei profundamente chocado, olhei para a velha dama e percebi correrem as águas do sereno noturno, qual lágrimas do seu convés delicadamente recurvado, envernizado, suas linhas clássicas ressaltadas pela nobre madeira de cedro, tinha a classe de uma GRACE KELLY, com seu cabelo alourado preso num elegante coque. Seu garboso porte bem diferente das lanchas modernas, fabricadas em formas de produção em massa. Um arraso! Percebi o perigo, virei as costas rápido, mas já era tarde demais eu estava perdido! Não restava outra atitude. Contra qualquer bom senso, telefonei para o Ivo, meu artesão de madeira, caríssimo, mas perfeito, um verdadeiro virtuoso no metier. Mandei arrumar os rolamentos da carreta, engatei no meu carro e a trouxe para casa. Cirurgia plástica, deixei-a nua no pelo, passar a mão naquela nobre madeira mais parecida com veludo, um verdadeiro tesão! Suas sinuosas curvas incompatíveis com uma forma de fibra de vidro, mas possíveis na madeira, de entontecer!

Me lembrei da Brigitte Bardot, passeando pela Baia de Saint Tropez, num filme de 1950, navegando numa RIVA AQUARAMA…

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NOTA DO EDITOR: O autor enviou uma informação: “Grace Kelly tinha uma RIVA também”!! Na nossa opinião, mulheres “desse tamanho” nem precisam ser as donas dessas jóias…

 

 

 

7 comments

  1. Waldir Cipola 20 agosto, 2019 at 18:52 Responder

    Flávio que sufoco !!!
    Sou piloto também e graças a Deus ainda não entrei numa fria desta
    Lendo sua descrição fiquei imaginando a cena.
    Parabéns!

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