sábado, abril 26

Relatos complementares da trajetoria de Pio Pereira dos Santos, por ele mesmo

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I. Vou narrar duas situações que aconteceram.

Onde fica o livre arbítrio e onde começa o acaso?
Quando deixei/abandonei/fugi/escondi da escola, levava comigo os meus documentos como qualquer cidadão.

Tentei me disfarçar usando lentes de contato e deixando bigode. Ledo engano. Fotos minhas foram divulgadas em jornais e revista. Havia fotos nas delegacias e até em postes. Ainda bem que usaram a foto de quando entrei na faculdade: não era feio, ao contrário me achava até bonitinho naquela foto.
Em junho quando decidi sair do país, busquei um amigo antigo e ele arrumou nova RG (foto novo visual).
No Uruguai, solicitei asilo

 

II. Asilo político. E agora sem nenhum documento. Escrevi para minha mãe. Veio o documento possível: uma cópia de certidão de nascimento. E com ela vivi no Uruguai.

Chegando no Chile em janeiro de 1971, com a decisão de aí viver, apresentei-me no setor próprio da Polícia para obter um documento de identificação válido no Chile. Apresentação, justificativa para o pedido, etc. Tudo na santa paz.

Entrego a Certidão de Nascimento. Uma interrogação maiúscula toma conta da face, do semblante e do olhar do funcionário. “Qual o seu nome?”  Mostro na Certidão: Pio Pereira dos Santos. Nome do seu pai? Aponto e confirmo: João Chaves dos Santos. Sua mãe? Yolanda Ferreira Chaves. O camarada balança a cabeça e refaz as perguntas. Mesmas respostas. Impasse. Explico que no Brasil os sobrenomes não precisam ser como no Chile: primeiro sobrenome do pai e primeiro sobrenome da mãe.

Passada meia hora de impasse sou orientado a volta algum tempo depois.
Segunda entrevista sem sucesso.

Três meses depois, proveniente um graduado equaciona a situação: para ficar no país, é preciso ter a nossa documentação. Você decide. Já havia feito uma rodada de exames na Faculdade de Medicina para certificar de que eu era um estudante de medicina. Vários dias nessa maratona e havia demonstrado os conhecimentos necessários. E já estava regularmente matriculado e cursando o internato.
Não podia ter dúvida. Dei o meu ok para uma possível mudança de sobrenomes.

Semanas depois, retiro meu RG chileno. Nome: Pio Chaves dos Santos Ferreira Chaves. Não entendi e por aí ficou.
Terminado o internato. Nome no diploma. Tem que ser igual ao do RG. Todos os documentos escolares, daqui e de lá, estavam em outro nome. A advogada do gabinete do reitor, possuidora de um espírito prático, redigiu um documento, curto e preciso, explicando que os dois nomes se referiam à mesma pessoa. Assinou e deu-e uma cópia, que guardo até hoje. Caso encerrado. No Chile, nenhum problema, país novo, nome novo!

14(?)/01/74, lá pelas três da madrugada, aeroporto de Toronto, depois várias esperando os funcionários da imigração atenderem mais de 250 refugiados vindos do Chile, muitas crianças cansadas e irritadiças vejo o funcionário preencher a minha ficha. Toda em quadradinhos, em cada quadradinho uma letra ou um número.
Primeira linha: Famíly name: Chaves dos Santos. Não há mais quadradinhos. Olha o infinito e murmura “it is enough”.
Segunda linha: first name: Pio. Mesmo personagem. Terceiro nome. Amanhã se for preciso, retorna-se ao caso.

Não sei se o personagem muda com o nome. Tampouco tenho certeza da superioridade do nomeador.
Meus documentos profissionais canadenses ora indicam um Pio Chaves, ora um Pio Chaves dos Santos
Naquele tempo a regra básica no mundo inglês era um só sobrenome. No meu caso, Chaves. Minha esposa de Oliveira, passou a Chaves. Madame Chaves. Era estimular uma militante feminista ao máximo.

No Chile, passei a assinar: PChaves. No Canadá continuei.

1978, demanda de cidadão canadense. Preenchidos os formulários. Recebo a identidade canadense. Nome: Pio dos Santos Chaves.
Vou conversar com o funcionário. Por que a inversão dos sobrenomes. Candidamente me pergunta afirmando: você assina PChaves, certo? Certo, confirmo. Que fazer com o “dos Santos”. Nome de família habitualmente é um só, então o “dos Santos” deve fazer parte do nome. E assim foi. Agora eu era um cidadão canadense nomeado: Pio dos Santos Chaves.

1980. Moçambique. Lei da Anistia em vigor. Voltar para a terra natal.
Vou à embaixada brasileira. Bem atendido. Com a certidão de nascimento, preciosamente guardada, solicito o passaporte. Tudo certo.
Dias antes da viagem, dúvida. Entrei nesse país com um passaporte canadense com nome diferente. Agora devo viajar com um passaporte brasileiro com um nome diferente.

Contexto da guerra fria. Autoridades moçambicanas muito estritas. Procurei um brasileiro conhecido de altos funcionários. Três dias de explicações. Não era eu um agente da CIA ou coisa similar. No final, tudo bem.

Volta ao Brasil. Preencher, documentos. Estado civil? Minha mulher defrontava com a dificuldade. Se casada, certidão de casamento. Aí constava que era casada com um indivíduo de nome Pio Chaves dos Santos Ferreira Chaves. Evidentemente dúvidas afloravam. Explicações e…

Fomos ao cartório. Casar? Não. São casados. Bigamia. Solução? Legalizar o casamento chileno.
Nem queiram saber o trabalho. Deixa-se para depois. Já nos anos noventa, decidimos nos casar de novo. Noivo e noiva solteiros entram no cartório e casados saem. Ela bigama, eu provavelmente não, pois eu casara duas vezes com a mesma pessoa.
Devo confessar que o meu livre arbítrio em nada participou nesta confusão.
Nem pensem nas dúvidas e explicações por os filhos não terem os sobrenomes como manda os nossos costumes.

 

III.  Outro causo, curto e…

1974, Montreal/Canadá.
Faço exames para habilitar ao internato. Aprovo. Envio cartas (mal escritas) para os hospitais da Província do Quebec, solicitando vaga. Para o próximo ano letivo: julho de 1975.

Até agosto tenho a bolsa do curso de francês. Depois … Empregos informais.

Para entender a situação. Os imigrantes vindos do Chile eram recebidos por um Comitê de Solidariedade. Cada pessoa ou família tinha um “padrinho/madrinha” para dar suporte. Conhecemos um casal padrinho de um brasileiro. Tudo bem. Agosto, esse casal nos convida para jantar na casa de um amigo deles. Domingo à noite. Flores nas mãos (agraciar a dona da casa). Hora marcada, campainha acionada. Recepção formal. Conversas um pouco truncada devido à língua. Dono da casa, presidente do College des Medecins du Quebec (CRM). Personagem socialmente muito importante. Jantar transcorre normalmente. Antes de despedir, o cidadão me diz: amanhã cedo procure o diretor do hospital X e pergunte da vaga para internato, em meu nome. Sem entender o assunto, nos despedimos.

Segunda-feira cedo chego na sala do diretor. A secretária gentilmente me atende. Explico a razão da minha vinda. O diretor não está. Ela medita as palavras: todas as vagas para internato estão preenchidas. Mas como o senhor veio recomendado pelo presidente do colégio, vou repassar a situação para o diretor quando ele vir. E você amanhã cedo que ele estará aqui.

Dia seguinte me apresento na secretaria. Rapidamente a secretária está na minha frente, se desculpando.”eu não sabia que o dr. Y (nosso interno) tinha falecido ontem. Solicita e penalizada me leva passa para a sala do diretor. Pessoa já idosa, extremamente amável e compreensível. Eu um pouco assustado e temeroso por causa língua (inglesa). Ele incentiva, etc. Aceito como interno. Caminho livre para a minha inserção na profissão. Na saída perguntei o que tinha acontecido com o interno, dr. Y. Explica. O interno dr. Y, era indiano, já de idade, portador de um marca-passo cardíaco. No domingo fora nadar numa…. O marca-passo parou” Simples assim.

Meus obstáculos profissionais equacionados. Tinha que cumprir a minha parte. Eu a fiz.
Juro que de nada participei e de nada sabia. Acaso ou destino?

 

IV. Caros colegas e amigos, concluo esses relatos que na fuga de São Paulo fui parar no Rio de Janeiro.

Recebido no apartamento de uma senhorita lá de Recife, que conhecemos (eu e o Leandro) na nossa Bandeira Científica.
Acolhida transitória. Nós fins de semana aí se hospedava uma senhorita.
Logo no primeiro encontro, a confusão estabelecida. Fugitivo e enamorado.

Agosto de 1969, eu mostrava algumas ruas de Montevideu à bela senhorita.
Lua de Mel sem os pre-âmbulos de praxe. Situação complicada.
Decisão: ela volta enquanto a situação não se aclara. Um ano depois a situação minha e, agora a dela também, está mais confusa. Tomo a decisão de romper.

Fevereiro de 1973, ela fica sabendo do meu paradeiro. Chile.Escreve uma carta de amor.
Fantástico! Mas…
Estava noivo de uma senhorita chilena. Casamento dentro de dez dias. Tudo encaminhado: igreja, convites, festa, etc.
Decisão simples e dolorida. Me incomoda muito causar dano/sofrimento a outro.
Dúvida da decisão não tive. Venha.

Tivemos nossos dois filhos no Canadá. O nosso filho mora em Maringá, professor de Filosofia da Universidade. A nossa filha após idas e vindas, mora em Montreal com sua família. Todos bem. Eu e a companheira, depois de tantas andanças, vemos as estrelas desde Florianópolis. Ela, Áurea, superou os obstáculos que tivemos e conduziu e manteve unida nossa pequena família. Hoje adoentada sou seu ajudante.

Me dou contente pela vida que tive. Nada melhor que encontrar um sorriso nos rostos daqueles com quem caminhamos juntos.

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