segunda-feira, maio 20

Encontros incidentais com o Professor Isaias Raw, por Paulo Cesar Sandler (56ª turma da FMUSP)

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“Incidental eu sou”…cruzando com o professor Isaías Raw

O trocadilho ruim, com letra de música de gosto discutível, é intencional. Na vida, plena de incidentes, o primeiro deles, nos ensina a medicina, é nosso nascimento. E o último, quando vamos embora. Podemos dizer que nossa vida segue a teoria das probabilidades.

Vou contar alguns incidentes que ocorreram comigo; pouco os procurei, mas ocorreram, e envolveram uma pessoa que ficou famosa, com toda justiça: o Professor Isaias Raw. Minha isnpiração ocorreu quando, navegando neste site,  o vi numa foto, ao lado do Eduardo Berger e do João Radvany, todo sorridente, como poucas vezes o vi! Tal flagrante foi obtido num Encontro de Gerações, em nossa Casa de Arnaldo.

Primeiro Incidente – 1963

O nº 2 da Folhinha de São Paulo (15/setembro/1963). O menino entrevistando a formiga é a minha caricatura, feita pelo Mauricio de Sousa assim como as demais ilustrações.

Em minha pré adolescência, escrevi uma reportagem, “A vida das Formigas”, para um suplemento infanto-juvenil – “Folhinha de São Paulo”, fundada pela Lenita Miranda de Figueiredo, jornalista genial e super-respeitada na “Fôlha da Manhã”. Tinha obtido aumento significativo da circulação, com a “Folha Feminina”, mas o que ela gostava mesmo era de crianças e mais ainda de adolescentes. Ela mesma parecia um deles, serelepe, atenta, sensível e afetuosa.

Pesquisei na Enciclopédia Britannica que meu pai tinha, depois de uma espécie de aula, meramente incidental, ou acidental, como quiserem, com o Professor Autuori, um biólogo que era o chefe do laboratório de formigas do Instituto Biológico; havia construído um formigueiro artificial, com um monte de tubos, um grande labirinto de vidro, tomando quase um andar da Instituição.

Escrevi a matéria e Lenita gostou muito. O diretor de redação da Folha era o Dr José Reis, professor e médico de nossa faculdade, fundador da SBPSP, da FAPESP, de várias revistas importantes, como Anhembi, Ciência e Cultura e talvez o maior responsável por divulgação científica que já apareceu por aqui.

Ele achou melhor deixar o julgamento final, se o artigo iria sair, ou não, a cargo do IBECC, Instituto Brasileiro de Educação e Cultura, fundado no final da guerra por vários professores da USP, também por instigação e responsabilidade de José Reis. O IBECC era responsável pela qualidade dos artigos da “Folhinha de São Paulo”. O patrocínio era da UNESCO; e o IBECC era famoso por ter vários conjuntos para estudantes, de química, biologia e física. Isaías Raw era um dos diretores e fundadores na representação em São Paulo, junto, se me recordo direito, de outros professores, Myriam Krasilchik e Maria Julieta Ormastroni. Lenita me ligou: disse que Isaías não estava nada de acordo que ela deixasse que uma criancinha – eu tinha 13 anos – escrevesse sobre um assunto tão sério. Myrian Krasilchik e Maria Julieta deram o contra no professor Isaías e disseram, “o artigo está ótimo, que boa ideia a Lenita teve!” Lenita comentou: “Isaías faz o que elas mandam, seu artigo vai sair”.

E saiu mesmo, no segundo número da “Folhinha”!

Fui perguntar para meu pai, que eu achava que sabia tudo: “Quem é Isaías Raw?”

Ele deu risada e disse: “É o melhor pesquisador de química médica na Pinheiros!”  E continuou: “Muito respeitado no exterior, mas não por alguns chefões daqui; há os que gostam muito dele, e o que não gostam de gente jovem e inovadora e que não é da “curriola” deles. Isaias fez uma carreira independente”.

Segundo Incidente – 1967

Exame do CESCEM, outra criação do Professor Isaías Raw. Sentei na carteira do Colégio Estadual “Paes Leme”, tirei o lápis e a borracha da carteira, para preencher a ficha encerada IBM. E minha fiel régua de cálculo, com ela estava mais seguro. Estava preocupado… eu era ruinzinho em aritmética

Entraram três jovens, sabíamos que eram estudantes de medicina; uma moça, um outro com dois pacotes, e o terceiro bem grandão ficou na porta, olhando para todo mundo – era o “fiscal”, corpulento… olhou-me com cara enfezada, veio correndo e falou: ‘Tô vendo tudo! Você tá expulso. Fora! Trouxe cola! Vai saindo agora, precisamos começar”.

Armei um tipo de pampeiro, tentei explicar. Acredito que elevei a voz, falei que não iria sair de jeito nenhum, nem à força. Disse para ele: “é só uma régua de cálculo, pô!” Ele elevou mais a ainda a voz.. Alguém abriu a porta: estava olhando pela janelinha de vidro. Não deu para ver quem era mas fosse quem fosse, deu uma bronca: “Que diabo está acontecendo por aqui? Que berreiro é esse? Está na hora de começar!” – era um homem baixinho, que se dirigiu bem zangado aos fiscais. O grandão logo foi explicando, vitorioso, e colocando a mão no meu braço, para me forçar a levantar, como se fosse polícia: “Professor Isaias, esse moleque está armando confusão, trouxe cola prô exame, mandei ele sair, mas teima em ficar – vou arrancá-lo daqui agora!” O homem baixinho olhou a régua, olhou para mim que tentava tirar a mão do fiscal. Ficou muito mais enfezado com o grandão: “Você é o que? Burro? Saia daqui, você não sabe o que é uma régua de cálculo? Saia daqui! Quem foi que pôs você para fiscalizar uma coisa tão séria?”.

O grandão ficou genuinamente espantado. Foi só aí que percebi que o “professor Isaías” era o Isaías Raw!!

O ambiente sossegou, nem as moscas faziam barulho. Ficaram só dois fiscais na sala. Fiz a prova, meio nervoso, mas muito alegre.

Justiça foi feita, por mera sorte! Isaias Raw passava em todos os colégios onde havia o exame, olhava sala por sala, e foi muita sorte que estivesse passando bem naquele momento por lá!

Terceiro Incidente – 1968

Domingos Lalaina deu nossa aula trote. Todo sério, avisou para comprarmos o Index Médicus e decorarmos as 100 primeiras folhas, falou para comprarmos um Biotério na Casa Fretin e fez uma lista das próximas aulas que iriamos ter. Uma delas se chamava “Aula Mágica”, era com o Professor Isaías Raw.

No mês seguinte me dei conta que o nome era “Aula Magna”.

Nunca tive uma aula tão boa; nem mesmo no cursinho, com o Clézio Morandini e o Tadashi Ito. O professor Raw nos ensinou o que era uma mitocrôndria e, na segunda “aula magna”, contou que foi o primeiro a “quebrar a membrana da mitocôndria no mundo, em 1955”, pois idealizou um método de ultracentrifugação. Era conhecido pelos melhores pesquisadores nos EUA e na Inglaterra; contou que conhecia Watson, Crick e Brenner. Fiquei tão fascinado que decidi: vou ser bioquímico. Bayardo e Marcel eram nossos professores, e me estimularam a procurar o Professor Isaías. Fui estudar “Bioquimica dos Disturbios Mentais”, por indicação deles – um livro da OMS.

Estávamos em dezembro de 1968. O professor Raw era muito ocupado, mas me deu atenção depois da aula, e disse, “Procure o Walter Colli, ando muito ocupado com o Experimental, agora”

No inicio de 1969, Isaías Raw foi “aposentado” pelos ditadores; e por pouco não foi preso. Meu pai comentou: “Engraçado esse negócio. Disseram que ele era comunista, mas a fundação Rockefeller e a fundação Ford queriam contrata-lo direto. Acho que ele foi para uma outra universidade nos Estados Unidos”.

Todos vocês sabem o que ocorreu, a história acabou sendo contada pelo próprio professor Raw.

Até procurei o Walter Colli. Ele e os outros eram um desânimo só. Pareciam ter perdido a cabeça, e acho que foi o caso. Nem quis saber de orientar um estudante do segundo ano, em um assunto que não lhe interessava e sobre o qual nada sabia.

Tínhamos notícias dele nos EUA: a esposa, Zenaide, era amiga de minha mãe.

Quarto Incidente – 1999 

Estava tentando vender uma casinha de campo em Atibaia.

E não é que me aparece o professor Raw e sua esposa, junto com um amigo de meu pai, dono de uma grande editora, que se tornou meu amigo também. Tinham casa no mesmo loteamento. Minha mãe havia me avisado, pois conhecia Zenaide de longa data. Assim que voltaram para o Brasil, desejavam ter uma casa para os fins de semana. Ele havia assumido a diretoria do Instituto Butantã e tinha colocado “a casa em ordem”; muitos dizem que teria sido o mais competente organizador que aparecera por lá nas ultimas décadas. Estavam com posição financeira muito melhor, pois Zenaide trouxe uma “novidade” que conheceu em Nova Iorque: fez a primeira “Deli” em São Paulo. (abreviatura de “Delicious”, as casas especializadas em comida judaica). Segundo minha mãe, e também segundo o professor, sua esposa era quem sempre cuidara das finanças do casal: tentava deixar o ambiente tranquilo para seu marido.

Olharam a casa, muito cuidadosamente, cômodo por cômodo. Entreolharam-se e ele, com a habitual franqueza, disse: “Meio acanhadinha, né?” Era verdade, pelo menos para os padrões deles: tinha 120 m2 de área construída, em um terreno de 1000 metros quadrados

Perguntei se não ficariam para um café, ou um chá, e todos aceitaram de bom grado, já que minha mãe havia feito umas gostosuras.

O professor me perguntou: “E o você, o que faz”. Todo sorridente, falei, “Fui seu aluno!”. Ficou interessado, e achei que dava para falar mais: “Conheci o senhor de nome antes”, e contei a história do IBECC e da régua de cálculo, e de minha tristeza ao não poder fazer bioquímica. Ele, muito sincero já declarou: “Bioquímica dos distúrbios mentais é uma coisa muito pretenciosa, que bom que você não entrou nisso”. E fez a pergunta fatídica: “E você terminou a faculdade? Se especializou?”   Eu: “Ah, sim! Fiz psiquiatria!”

Olhou-me de alto a baixo, com olhar meio misterioso, mas nada aprovador. Prossegui: “O sr foi meu maior exemplo, como cientista! Tento fazer como o senhor fazia!”. Olhou de novo, parou de tomar o café e perguntou, desconfiado: “Que parte da psiquiatria você faz?”  “Psicanálise” – respondi – “tento mostrar o quão científica é a pesquisa em psicanálise! Acabei de publicar um livro….” –  e contei que o livro versava sobre aspectos transdisciplinares, e que um outro amigo dele, também dono de uma editora, tinha ido no lançamento, etc, etc, etc e outras coisas que ele foi ouvindo de cara fechada… Colocou a xicara de café na mesinha, nem provou do bolo, levantou e olhou para a esposa: “Zenaide, precisamos ir embora, já está na hora”.

Lembrei de meu pai, que sempre me dizia: “Você perdeu uma boa oportunidade de ficar com a boca fechada!”

Ainda assim, minha lembrança do Professor, incluindo essas partes que sempre me pareceram engraçadas, é maravilhosa.

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