sábado, julho 27

MINHA EXPERIÊNCIA EM SUZANO, Eduardo Berger

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Vou contar minha experiência na Casa do Convalescente do HC-FMUSP (esse era o nome do estabelecimento a época), em Suzano.

Sempre achei que, na vida, sempre há um lado positivo em tudo aquilo que vivemos, e não foi diferente nos dois plantões que dei lá – um no R1 e outro no R2. Lembro que travei conhecimento com famosa espécie de mosquito que muito me incomodou, o Suzanopheles convalescens (rsrs), mas um bom Detefon ajudou a dele me livrar…

Pois bem, vou iniciar meu relato nos corredores do PSC, onde as macas abrigavam uns “traumas de crânio” – daqueles que inspiraram o Waldir e o Lalaina a apresentar na “dupla caipira” do SHOW, uma paródia de Saudades do Matão que muitos conhecem (“Fumo atrupelado na Estação da Luz”…). A história da música acontecia na vida real: o cara chegava e “ficava conhecendo” Sao Paulo, mais precisamente a Estação da Luz e o Hospital das Clinicas… Ao chegar, o total despreparo para enfrentar a metrópole gerava o previsto atropelamento, e o seu transporte para o PS do HC era uma certeza!!

Se ele tivesse a “sorte” de ter uma lesão cerebral cirúrgica, era levado à S.O., e tinha garantida uma vaga na enfermaria. Caso contrário, ficava “morando” lá conosco, numa maca tosca, num corredor frio e úmido, geralmente sem contactuar e com o codinome de “Desconhecido”… Via de regra, ao cabo de algumas semanas a misericórdia divina se encarregava de levá-lo através de uma pneumonia… Havia a praticamente impossível chance de algum parente chegar, reconhece-lo e oferecer-lhe abrigo. E sobrava a única saída viável para sua redenção: a preciosa e rara vaga em Suzano. A gente já fazia a solicitação “de cara”, quando previa essa conjunção de fatores: traumatizado de crânio, desconhecido, sem lesão passível de cirurgia, sem possibilidade de ser resgatado por familiares…

Foi assim com um ‘highlander’ que sobreviveu naquela maca por longo tempo! Nunca soube seu nome – nem ele sabia! – e quando iniciei meu estágio de 6º ano de PS, ele já lá estava há um bom tempo. Parecia um sequelado, já que ficara restrito à maca, em posição semi-fetal, em decúbito semi-lateral, falando pouquíssimos monossílabos com semi-nexo. Me passaram o caso: “ele gosta de fumar, arruma um cigarrinho para ele de vez em quando”… “não fala, mas pode entender o que se fala com ele”… “ele sabe que aqui tem um cara bravo chamado Fellow, ele se esconde debaixo do lençol quando a gente fala que o Fellow está chegando”!

Tragicômico, né? Politicamente incorreto, certo? Mas desse folclore também se fizeram nossas experiências de vida. E foi assim que, algumas vezes, lhe passei o tal cigarrinho aceso – a gente fumava na sala de admissão do PS (!!) – e ele pitava em baixo do lençol, pro Fellow não ver.

Aí, chegou um grande dia, talvez uns dois meses depois de eu conhece-lo: a improvável e redentora transferência para a Casa do Convalescente, em Suzano! Presenciei quando o transportaram para a maca da ambulância: um traste, semi humano, articulações anquilosadas (?), “todo duro”. Seu futuro? Incerto, desconhecido…

Transcorre mais de um ano, já no R1, fui escalado para o plantão na Casa do Convalescente.

Eu tinha um fusca ’66, uma jóia que não me ‘deixava na chuva’. Agora, ir a Suzano era uma aventura digna de um Indiana Jones, quase um Safari. Não havia as grandes avenidas de hoje, e o “passeio” levava algumas horas por caminhos quase tenebrosos. Sai ainda escuro, era fim de semana, e cheguei por volta das 7h30. Ao estacionar no pátio, um mulato franzino, sorridente, chegou-se a mim, vestindo pijama e com o tradicional roupão de toalha usado pelos internos daquele hospital. Nada falava, mas sorria e, com gestos característicos, me fez sinais que queria lavar meu carro. Concordei, até pra não polemizar, e entrei no prédio. Fui recebido por uma “velha” enfermeira – devia ter uns 40 anos – que demonstrava muita experiência. Me convidou para um breve lanche (muito bom!) e me disse que em seguida iríamos “passar visita”.

Depois de saborear uns pãezinhos deliciosos, um bolo macio, um café fresquinho, daqueles que a gente toma no sítio, fomos à “visita”. Na verdade, dos 60 ou 70 internados, ela me orientou que eu deveria fazer apenas a prescrição da grande maioria e que, em seguida, iríamos juntos ver os que precisavam de alguma avaliação. Não discuti. A mulher esbanjava autoridade e demonstrava sabedoria (que enfermeira! que diferença de certas senhoritas que convivemos hoje em dia!). Ela ia me dando as papeletas, me “passando os casos”, e eu ia prescrevendo… Depois me levou para visitar os mais graves e pouco, ou nada de novo, eu acrescentei.

Chamou-me atenção, uma grande enfermaria de pacientes em coma, todos de fraldas. Perguntei sobre as escaras de decúbito. Ela me disse: “Que escaras? Venha ver?” Tirava as fraldas dos inconscientes indivíduos e pude constatar aquelas bundinhas rosadas, tal qual de bebes! Ninguém com escara! Fiquei perplexo, emocionado e admirando com o trabalho daquelas profissionais dedicadas que, com seus cuidados de prevenção, obtinham resultado espetacular. Que corpo de enfermagem!

E assim foi a manhã inteira. Aí um almoço da primeira qualidade e ela me recomendou que eu fosse descansar e, após a tarde e o jantar, faríamos mais uma repassada em um ou outro caso.

Da janela do restaurante, avistei o paciente que já havia lavado meu carro e comentei com ela o fato. Ela me contou que ele lavava todos os carros dos médicos que iam aos plantões e que não cobrava, mas trocava seu trabalho por cigarros… ele gostava muito de fumar! Pedi para ver seu prontuário e identifiquei aquele “sequelado” do PSC de um ano antes!

Confesso que nunca me esqueci desta passagem de minha atividade profissional – já se passaram quase 50 anos! A singeleza da ocorrência nem de perto se compara às grandes alegria que tive, técnica e profissionalmente, ao longo de minha vida médica. Mas ver aquele ser humano ativo, movimentando com desenvoltura os quatro membros, sem qualquer seqüela neurológica, totalmente reabilitado em suas funções motoras foi comovente!

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