sexta-feira, julho 26

MAMED, O GÊNIO, A DEDICAÇÃO, O FUSCA, O ÍNDICE E A MORTE PRECOCE por Roberto Anania de Paula

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Conheci o Mamed Hussein no Cursinho 9 de Julho por ocasião do último simulado. Um tipo robusto, paletó justo, “tiques” nervosos e apontado como vaga certa na Pinheiros. Realmente foi aprovado entre os primeiros colocados, depois do Lauro Bedin Jr.

Durante o curso teve pouco contato com a turma, a não ser uma anti-candidatura à presidência do CAOC quando foi derrotado pelo Franklin Amorim Sayão. Na realidade não frequentava todas as aulas, mas não repetiu. Depois que fomos parceiros na residência, fiquei sabendo das dificuldades econômicas quando namorou uma “patrícia” da alta sociedade durante o curso. Sobreviveu dando aulas todas as noites num conhecido curso (Santa Inez) de madureza de São Paulo.

Mamed era de uma família simples, filho de comerciantes de frutas no mercado municipal. Durante a residência, estive na sua casa na Moóca colhendo exames devido a uma hepatite adquirida no HC.

Tinha um gênio difícil e explosivo. Destruía instrumentos cirúrgicos que não funcionavam. Um deles – uma pinça de Abadie usada em gastrectomias – valeu-lhe expulsão da residência. Como na ocasião era eu o Residente Chefe do HC, consegui transformar a expulsão em suspensão por 40 dias, justamente o tempo necessário para a cura da hepatite.

Mas foi durante o internato que ganhou projeção pela dedicação e entrega no trato com os pacientes. Devido aos problemas econômicos já citados, tinha um fusca velho, com peças multicoloridas devidos às seguidas batidas. Substituia as amassadas por usadas e não se preocupava em pintá-las. Como não tinha carta, sempre pagava quando das batidas. Além disso permanecia de dois a três dias ininterruptos no HC e, às vezes, o carro inicialmente colocado em fila dupla, ficava isolado no entorno do hospital. Esta situação foi motivo de mais de um guinchamento para o Detran.

Durante momentos livres nos plantões, naquela salinha em frente ao PSC, foi informado que ninguém pagava ninguém após abalroamentos. Era só pedir os documentos e no final cada um pagava sua parte. E assim Mamed o fez quando bateu num Galaxie. Desceu do carro e imediatamente questionou o motorista: “Seus documentos por favor”. “Pois não”, disse o condutor mostrando os mesmos: “Delegado Classe Especial da Policia Federal”. “Por favor agora os seus”. E mais uma vez ele pagou a conta…

Quando da escolha das duplas para a residência na 3a CC, ficamos juntos. A famosa dupla “Mamed-Ana”.

Uma ocasião, quando já trabalhava com o Professor Eugênio Ferreira, convidei-o para uma cirurgia de urgência no HSL. Enquanto lavávamos as mãos, Mamed questionou: “operar colecistite de urgência”? Era uma senhora de 85 anos, diabética e hipertensa. Quando o Professor Eugênio abriu havia necrose do fundo vesicular. Após a operação, o professor que tinha ouvido nossa conversa disse: “colecistite aguda é uma urgência cirúrgica; deve ser operada de imediato, pois senão pode acontecer isto”. Naquele tempo esfriava-se o processo e depois a cirurgia. Saímos dali “jururus”, mas seguramente “crescidos” no mister cirúrgico.

Outra ocasião fomos ajudar o Professor Plínio Bove no Hospital Santa Helena. Após uma gastro-duodeno-pancreatectomia, estávamos discutindo a prescrição eletrolítica pós-cirúrgica, quando, ouvimos o Dr. Bove : “prescrevam Soluto de Darrow, 500ml, com 2 gramas de cloranfenicol de 12 em 12 horas. Lá se foi a metabologia pro espaço. Mas o Mestre era um notável cirurgião e o paciente evoluiu bem.

Grafite no bar do Sr. Abel: “Me arruma um cigarro aí”, o fusca e cobrador!!

Mas a história do Mamed não termina aí. Durante a residência, sua perspicácia, inteligência e suas observações extraordinárias construíram um índice, eternizado como o Índice de Mamed, até hoje lembrado e brilhantemente já reportado pelo Berger. Ao término da residência, tinha tudo para permanecer no HC, mas seu temperamento sepultou completamente esta possibilidade.

Em 1973, como diretor o Pronto Socorro Municipal de Jundiaí, convidei o Lamardo, o Tempestini, o Mammana e o Mamed. O parceiro do “turco” era um patologista que aprendeu ECG e clínica médica com ele. Tornou-se posteriormente cardiologista na cidade.

Depois, Mamed sofreu um acidente automobilístico com importante ferimento nos olhos. Foi tratado no Hospital do Servidor de São Paulo. Quando fui visitá-lo, ainda com os olhos vendados, reconheceu imediatamente minha voz e combinamos operar juntos uma vez recuperado. E assim, após 3 três meses, com lesão residual num dos olhos, reassumiu suas atividades cirúrgicas. Nesta ocasião conheceu a Bia, aluna da primeira turma da Faculdade de Medicina de Jundiaí, que tornou-se esposa e mãe dos seus três filhos.

Trabalhou também na Krupp. onde com seus conhecimentos metabólicos desvendou e resolveu um “cansaço” que incomodava os funcionários da forjaria: alterações eletrolíticas devidas ao calor excessivo. Com medicação (comprimidos manipulados), os funcionários criaram a lenda que se tratava de salitre do Chile, que causava “impotência sexual”. Mas logo os resultados mostraram o contrário e ele ganhou o respeito da empresa, do departamento médico e dos funcionários.

Seu casamento com a Beatriz, do qual o Eugênio e eu fomos padrinhos, foi um caso à parte. Ficamos aguardando no altar uma hora, enquanto o Mamed se deliciava com as musicas clássicas escolhidas por ele e, só depois, avisou a Bia para vir para a Igreja. A festa foi no Holiday Inn, hoje The Royal Palm Plaza, em Campinas e. durante o evento. ele deu à esposa um Chevette branco novinho, embalado como presente. Foi passar a lua de mel em Acapulco, no México e, ao retornar, trabalhou em diferentes empregos para saldar os compromissos assumidos. Cumpriu-os todos.

Inicialmente morou em SP e após sofrer assaltos, fixou residência em Campinas.

Já tinha construído um barco com todos os requisitos de engenharia náutica, totalmente desenhado e projetado por ele. Projetou também toda a sua casa e. durante inspeção à construção, foi vítima de ruptura de aneurisma cerebral, razão da sua morte precoce aos 48 anos. Ao lado do caixão, a Beatriz me apresentou aos seus filhos, como o melhor amigo do pai deles.

Dos 3 filhos , um é empresário e duas são médicas (uma dermatologista trabalha na Mayo Clinic nos USA e a outra, oftalmologista foi minha aluna na FMJ). A Bia trabalha como pediatra. Viveu e vive para os filhos e três netos atualmente.

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Mamed Hussein, 18/03/1945 – 29/05/1993. Deixou um enorme legado de competência, dedicação aos pacientes, à família e escreveu seu nome na FMUSP, HC, São Paulo, Jundiaí e Campinas, onde hoje é nome de rua

Tive o privilégio da convivência com sua inteligência, cumplicidade, amizade e lealdade.

Sua esposa, a Beatriz e os filhos: Thaís, Guilherme e Renata, seguramente têm o respeito da sociedade em que vivem.

5 comments

  1. Flávio Soares de Camargo 16 outubro, 2018 at 09:00 Responder

    incrivel a história dele , Eu me lembro dele ser um homem calado mas irriquieto . Mas o desenrolar de sua vida foi formidáverl .
    Sua capacidade de superar dificuldades , é uma história a parte de superação .
    Parabéns pela postagem Anania , uma verdadeira e merecida homenagem, !

  2. Guilherme Hussein 9 maio, 2019 at 10:54 Responder

    Emocionante ler esse seu texto Anania, agradeço por escrever com tanto carinho sobre meu pai! Um grande abraço Guilherme Hussein

  3. Julio Ruiz Delgado 9 dezembro, 2022 at 16:30 Responder

    EU, JULIO RUIZ DELGADO, GOSTARIA IMENSAMENTE DE CONVERSAR COM QUEM CONVIVEU COM O MAMED HUSSEIN.
    EU FIZ O COLEGIAL COM ELE, E CONVIVEMOS DURANTE 3 OU 4 ANOS, TANTO NO FIRMINO DE PROENÇA, COMO NA MOOCA…
    SEMPRE TIVE MUITA AMZADE COM ELE, NA ESCOLA E FORA DA ESCOLA.
    ABRAÇO!
    MEU EMAIL jrdelgado@uol.com.br

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