segunda-feira, dezembro 30

Reminiscências de um “52º formado em Medicina na FMUSP”, Luiz Calos Uchôa Junqueira Filho

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Minha esposa sempre brinca comigo, lembrando-me que eu nunca fui médico, sempre fui um “Formado em Medicina”: ela tem toda razão, e a culpa, se é que há alguma culpa nisto, é toda minha. O modelo médico, curativo e prescritivo, nunca foi a minha praia, nunca me encantou como aquele outro modelo que, na falta de um termo melhor, talvez pudéssemos chamar de “humanístico”. Mas aqui, no entanto, sinto-me tremendamente constrangido em me apossar deste “auto-elogio”: nunca fui um cuidador, não me acho generoso, não sacrifiquei minha vida para ser professor como meu pai, tenho, inclusive, dificuldade em me entregar à deliciosa atividade de ficar horas “jogando conversa fora com os amigos”.

Mas, por outro lado, me encanto com a fragilidade humana; com a multiplicidade de recursos que o ser humano mobiliza para enfrentar os mistérios da vida; com o desafio permanente que é o aprendizado com a experiência de viver; com a presença da morte já nas primeiras partículas de vida; com o incrível convívio entre o amor e o ódio. É claro, que este quadro não se apresentou para mim com clareza quando me deparei com a difícil escolha de uma profissão, mas alguns fatos fortuitos com certeza me influenciaram. Meu pai, que vocês conheceram profissionalmente, apesar de ser um dedicadíssimo cientista, era um grande aficionado das artes, da história das civilizações, da sociologia das religiões, do folclore dos grupos étnicos, e assim por diante. Por outro lado, meu avô materno, o Desembargador Antão de Moraes, além de um respeitado jurista, era um bibliófilo apaixonado, possuindo uma fantástica biblioteca de Arte, Literatura e História, além, naturalmente, da parte jurídica.

Portanto, ao me ver diante da escolha de uma profissão, esta influência já estava viva e operativa, encaminhando-me para o desafio de tentar deslindar os mistérios da mente humana. Sempre me pergunto se, em vez de enveredar-me pela Medicina não teria sido mais útil para mim ir pelo caminho das Artes Clássicas, da Mitologia, da Sociologia ou da Antropologia: curiosamente, malgrado reconhecer seu imenso valor, sempre me senti assustado com a Filosofia, ou talvez, com o nível de abstração que lhe era intrínseco e que já me judiava nos campos da Matemática e da Física.

Ora, por que estaria eu escrevendo isso às 3 horas da manhã do dia 19/5/2018? Com certeza, porque ontem, passei o dia no Complexo Hospitalar Edmundo Vasconcelos, sendo operado de hérnia por nosso querido Eduardo Berger: este sim, o grande “humanista” de nossa turma, que com sua entusiasta dedicação à nossa história, acaba nos contagiando. O fato, é que este episódio mexeu comigo, seja pelo reencontro profissional com o colega, seja por poder contar com o onipresente carinho de minha esposa e filhos, e mesmo por estar experimentando nesta fase de minha vida, centros médicos de excelência fora do circuito daqueles mais elitistas e badalados.

Aliás, acho chegado o momento de voltar-me para nossa querida e especial 52ª Turma, que eu, sinceramente, acho que frequentei e convivi muito aquém daquilo que ela merece. No entanto, apesar da escassez de minhas contribuições grupais, inclusive neste site que cada vez ganha maior importância, arrisco-me a citar alguns encontros que me marcaram, menos por seu caráter pessoal e mais por seu sentido universal: antes de começar, porém, desculpo-me pelas inevitáveis omissões.

Julio Funabashi, com sua ponderação e humildade nipônicas, ajudou-me nas angustiantes investigações anatômicas que nos colocam, nos primórdios do ensino médico, de frente com as heranças científicas da morte. Afinidades eletivas, por outro lado, são acontecimentos naturais nos grupos humanos. Marcaram-me a delicadeza da Masa, a sinceridade da Lea, as inteligências do Lauro e do Adura, a amizade do Murilo, os coleguismos do Lorival, Lech, Godoy e Frederico, bem como, ao longo do tempo as amizades espontâneas do Noragi, Alzira, Wolfgang, Milton Della Nina, Cláudio Rossi e, last but not the least, o gratificante convívio esportivo com Carlos Martins, Francisco Luccas, Joel Franco, Ranoya e Waldir Cipola; a presença inesperada do Paulo Szeles, recentemente, no lançamento de um livro meu, fez-me sentir que ele estava ali representando toda nossa turma.

Nossos trajetos, como sabemos, alternam as alegrias com as tristezas. O vestibular, para mim, foi um terrível desafio: além de minha dificuldade visceral com a Física, tinha a me assombrar um pai que era Presidente do CESCEM (cargo que ele abriu mão por questões éticas), que tornara-se catedrático ao redor dos 30 anos, e que já exibia uma produtividade científica que já prenunciava o “Tratado de Histologia” que viria a alcançar repercussão mundial (hoje, para nosso orgulho, traduzido para 17 línguas).

A seguir, tive que arcar com minha timidez e reduzidas “habilidades médicas” para participar nos festivais de plantões que acabavam quebrando vários galhos dos jovens estudantes. Além disso, o acaso histórico nos fez entrar na universidade no momento em que ela fora invadida pela efervescência política que agitava o País. Apesar disto não me afetar diretamente, afetou, infelizmente, a meu pai.

Ele nasceu um cientista puro. Quando jovem, colocava ratoeiras no porão da casa onde morava para dissecar os ratos ali enroscados: curiosamente só depois de sua morte, em 2006, fiquei sabendo que ele, ainda estudante, publicara um “Atlas de Anatomia do Rato”. Esta pureza científica o acompanhou por toda vida e, na década de 70, lhe trouxe dissabores ao tentar preservar o foco das pesquisas que desenvolvia com entusiasmo no seu “Laboratório de Histofisiologia”, por ele criado ao assumir a cátedra.

É claro que este é um assunto polêmico, mas sou testemunha que ele nunca se interessou ou militou por questões políticas, dentro ou fora da comunidade científica. Eu, pessoalmente, acho fundamental que possamos respeitar as alteridades humanas, mas acredito que isto produza melhores resultados se cada atividade possa ficar circunscrita em seus respectivos territórios, o que, concordo, nem sempre é fácil de se conseguir. De qualquer modo, sempre fui coerente com o princípio de valorizar pessoas acima de quaisquer interesses corporativos ou ideológicos. Afinal de contas, como estabelecer o que é melhor: a ciência exata ou a humana, a religião ou o agnosticismo, o amor na homo ou na heterossexualidade, a palavra ou a imagem, a paciência ou a diligência?

Apesar disto, nunca me furtei de integrar colegiados formados para defender interesses grupais, seja no Colégio, na Faculdade, ou na Sociedade de Psicanálise da qual fui Presidente. Paralelamente, dediquei-me intensamente a esportes coletivos, onde hauri um rico aprendizado quanto à competitividade, rivalidade, frustrações, cooperações, e assim por diante.

Recentemente, alguns dados surgiram em nosso site, que gostaria de comentar. O episódio da transferência do Prof. Junqueira para a Escola Paulista foi devido a uma briga com o Prof. Cunha Mota, então catedrático de Anatomia Patológica: reza a lenda, que ele teria prometido voltar como catedrático. Seu relacionamento interpessoal, padeceu de sua dificuldade em aceitar as limitações alheias, principalmente de pessoas hierarquicamente superiores. Um bom exemplo disto, está numa gravura de Don Quixote, que ele mantinha em sua sala, onde o herói empunhava sua espada para o alto numa atitude de conclamação: não acho difícil conjecturar que, no imaginário do Prof. Junqueira a exortação seria: “Independência ou Morte à Mediocridade” (embaixo desta imagem, ele inseriu uma fala de Don Quixote: “Ladran Sancho, señal que caminamos”.

Emocionou-me com o depoimento da Alzira sobre sua importância em sua carreira; fiquei também surpreso com a informação de que ele era daltônico, fato para mim totalmente desconhecido (mas, com certeza, importante para um histologista).

Enfim, meu pai nunca entendeu esta tal de Psicanálise que eu adotei, e que estudava objetos que não podiam ser observados ao microscópio: para mim, no entanto, ela me tem fascinado e ajudado pessoalmente, pois, através dela, pude melhorar minha personalidade, entender o casamento como um desafio encorajador, e modular minhas reações mais impulsivas.

Um grande abraço para todos vocês!

4 comments

  1. Bonno van Bellen 23 maio, 2018 at 13:15 Responder

    Ola Junqueira. Lindo depoimento. Deixou-me emocionado e bastante impressionado. Tanto com sua sensibilidade quanto por mencionar com tanto carinho a figura de seu pai. Ele foi muito importante na minha formação. Foi o período em que trabalhava na Histologia. Parabens !!
    Bonno

    • MURILO PEREIRA COELHO 31 maio, 2018 at 12:58 Responder

      Caro amigo Junqueira
      Somente hoje estou vendo seu texto. Inicialmente agradeço a referencia a nossa amizade. Sem dúvida, éramos 100 colegas, mas amigos de verdade eu contaria em uma de minhas mãos e, seguramente, você é um deles. Nossa afinidade começou lá no BRIGADEIRO, você, Funabashi e eu aprendendo FISICA com o inesquecível TADASHI ITO. E posteriormente,em nosso convívio na Faculdade. Acho que duas coisas nos aproximaram mais: primeiro, o meu segundo pai era também Junqueira e segundo, a nossa paixão pelo Basquete. Quantos jogos assistimos juntos… Hea dois anos nas Olimpíadas do Rio, lembrei demais de você, pois assisti a final do Basquete masculino.
      Parabéns pelo seu brilhante texto.

  2. Milton Della Nina 24 maio, 2018 at 19:13 Responder

    Prezado Junqueira, Sua mensagem é como você, sensível e inteligente. Sinto-me feliz de ser seu amigo por quase toda minha vida.

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