segunda-feira, outubro 7

A Saga da Bandeira Científica – 1966, Roberto Anania de Paula

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O projeto Bandeira Científica, idealizado por acadêmicos da FMUSP, foi consolidado anualmente a partir de 1957 e encerrado em 1969, por problemas políticos entre o regime militar e a faculdade.

Foi assim que, em janeiro de 1966, a 52a partiu para o Recife, com 24 colegas. O objetivo era documentar através de um filme, os avanços que os pernambucanos estavam fazendo no controle e extermínio dos caramujos hospedeiros, intermediários da esquistossomose mansônica. Alias, a nossa Bandeira Científica, contemplava inicialmente dois projetos: o do Araguaia, que por não conseguir apoio da Aeronáutica não prosperou e alguns participantes como eu fomos integrados ao projeto Pernambuco.

Um ónibus foi contratado para a viagem de ida, com roteiro turístico via Ouro Preto, Belo Horizonte, Salvador, Aracaju, Maceió e finalmente Recife onde ficaríamos hospedados em escolas, com refeições na Universidade Federal de Pernambuco. Viajávamos à noite e durante o dia visitávamos as cidades e os pontos turísticos. À noite, a galera do fundo se alegrava com a bebida barata que corria solta e os colegas que iam à frente tinham dificuldade de dormir. Mas mesmo assim a viagem seguia tranquila.

Em Salvador, conseguimos encontrar um pernoite para as meninas numa entidade religiosa e dormimos no ônibus. Visitamos a Faculdade de Medicina, a mais antiga do Brasil, e o Museu de Medicina Legal com a cabeça preservada do “Lampião”. Seguimos, com a “Beth Baiana”, colega do 3º ano local, motivo de desagrado das nossas colegas.

O grupo era coordenado pelo Professor Cláudio, assistente da Parasitologia, e em Recife, incorporamos técnicos de filmagem da Universidade Federal que receberam rolos de filmes, patrocinados pela Universidade de São Paulo. Visitamos algumas povoações periféricas que, nas lagoas locais, tinham disseminado espécies diferentes de caramujos, para exterminar os outros, hospedeiros intermediários da doença. Também ações de engenharia sanitária estavam sendo realizadas para evitar a contaminação futura das lagoas e cursos d’água que eram utilizados pelas populações ribeirinhas locais.

As tomadas das filmagens foram estudadas com a equipe e com o Professor Cláudio. Nós, os atores, iríamos caminhar pelos locais, ao mesmo tempo que um ou outro iria detalhando todos os tipos de ações realizadas, inclusive conversando com os residentes. O objetivo inicial seria a documentação das ações, os locais, as pessoas envolvidas, crianças nadando em lagoas, populações ribeirinhas e uma vez em São Paulo, a edição do filme com as informações científicas e aspectos de prevenção.

Isto feito, passamos ao treinamento. Ao mesmo tempo que a equipe de filmagem acertava questões técnicas (luz, exposição, etc), fazíamos os ensaios das cenas. O desastre foi total. Deturpamos as possíveis imagens com gestos indevidos, línguas expostas, abano com mãos abertas junto as orelhas e outras coisas mais. O Professor Cláudio cansou de pedir disciplina, de mostrar descontentamento com o que se repetia diariamente, de tal forma que não se conseguiu nenhuma cena. Irritado com as brincadeiras e sem nenhuma condição de liderança, não teve outra escolha, se não abandonar a Bandeira, comprar passagem e retornar a São Paulo. Desastre total!! A 52a cometeu, quem sabe, sua única falha ao longo dos 6 anos de graduação.

Com o objetivo principal sem perspectivas, passamos a pensar em desfrutar Recife e pensar na volta. Já tinhamos feito turismo em Belo Horizonte, Ouro Preto e Salvador. Em Maceió, um pit stop no “Gogó da Ema”, curioso coqueiro praiano, cujo tronco era todo ondulado e ponto turístico nacional.

Era a vez de Recife, a “Veneza” brasileira, com o Capibaribe, Beberibe e suas pontes, seu porto e suas praias foi rapidamente dominada. Boa Viagem, distante do centro e ainda deserta, era a preferida. A vizinha Olinda e sua tradição carnavalesca tornou-se ponto de encontro para bebericagem e “agulhas fritas” de aperitivo, junto ao mar que devorava suas praias. As tradicionais caminhadas pelo centro de Recife eram rotina também.

Nesta época, os japoneses eram raros no pedaço e a presença do querido casal Yasuda logo chamou a atenção. Uma pessoa que se identificou com responsável por um programa de televisão, logo questionou quem eram e que faziam em Recife. Além destes aspectos turísticos, também acabamos frequentando bailes pré-carnavalescos onde o frevo reinava solto.

Quando fomos procurar transporte para a volta, compreendemos a bobagem que tínhamos feito. Naqueles anos, era frequente os irmãos nordestinos deixarem o trabalho por ocasião das festas de final do ano e partirem para a terra natal. Só voltavam após o carnaval. Assim todos os ônibus estavam lotados e não havia nenhum disponível. Mesmo ônibus de carreira como fizemos para a ida. Então, conseguimos com muito custo, um ônibus que fazia o percurso Recife/Caruaru e com bancos fixos. Além disso, faltava-nos dinheiro para o contrato, pois com a falta de passagens, os preços dispararam. Naquela ocasião o nosso déficit era algo em torno de R$ 4.000,00 em dinheiro atual.

A estratégia então foi montada: alguns participaram, mas o Ranoya foi o mais visionário. De imediato, conseguimos uma entrevista com o Governador Paulo Guerra no Palácio da Princesas, onde R$1.500,00 foram-nos doados. Em seguida, empresaríamos a ida do Paulinho/Mieko na televisão. Em primeira mão, eles estão tomando conhecimento do cachê recebido! Mais R$500,00!

O restante foi obtido com a venda de 6 assentos no câmbio negro, na rodoviária do Recife. “Atenção, Atenção: Recife/São Paulo! Direto, Direto! Dois motoristas!”. No meio daquela multidão logo completamos o montante. Uma senhora, bem obesa e com um enorme rádio de pilhas Transglobe, comprou dois assentos. Para ela e para o rádio. A saída foi programada para dali a dois dias. O que não dissemos, era que o ônibus tinha somente um motorista, demoraria quatro dias para chegar a São Paulo e que iríamos pelo sertão pernambucano e baiano, para visitar ainda a Cachoeira de Paulo Afonso, último desejo turístico da maioria do grupo.

No dia da saída, pela manhã, Porto e Ranoya avisaram que familiares em São Paulo tinham conseguido um retorno via FAB, e nos despedimos para um reencontro em São Paulo. O ônibus sairia às 17 horas e na hora da partida os dois retornaram para viajar conosco! O voo da FAB, havia sido cancelado… Nosso retorno foi terrível, mas a cachoeira e a usina de Paulo Afonso parcialmente construída foram muito interessantes. Entre os “convidados”, a mulher ligava seu rádio as 4 horas da manhã e acordava todo mundo. Além disso havia um pastor religioso que fazia pregações diárias e procurava convencer a tia do Leandro durante todo o trajeto. Não conseguiu.

Enfim, chegamos em São Paulo, famintos, emagrecidos, exaustos e frustados. Uma ponta de alegria, no entanto, reinava. Havíamos cruzado parte deste nosso Brasil desconhecido. A nossa fracassada Bandeira Científica proporcionou parte da nossa formação cultural. Cultura humanística, científica, solidária e exercício da resolução de problemas.

Uma saga, realmente inesquecível e que tenho certeza que marcou a vida de todos os participantes:
Antonio Leandro Francischinelli . Carlos Roberto Martins . Carlos T. Watanabe . Cheng Faun Yue Cesena · Cleyde Cley da Silva . Egídio C. da Costa Arruda · Frederico Polo Muller · Joel Faintuch . José Luiz da C. Porto · Koji Fushida · Lea Lederer Diamant . Marcus A. A. Ranoya · Maria Elisabeth Gimenez · Mário Egashira · Mieko Igarashi Yasuda . Milton Della Nina · Noragi Kac Dalva · Paulo H. Yasuda
Pio Pereira dos Santos . Reinaldo Borgiani · Roberto Anania de Paula Romeu Abrahão Abdala · Samuel Abramavicus . Sérgio B. Pinto da Rocha . Professor Cláudio · Tia do Leandro

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