segunda-feira, maio 20

Boanerges de Souza Massa, o “RETORNO” – por Eduardo Berger

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Boanerges de Souza Massa – Um fora da lei… e um fora de série!

Doutor duplamente: “Casa de Arnaldo” e “Arcadas da São Francisco”!

  • Graduado em medicina pela USP – 1965 (turma 48)
  • Graduado em direito pela USP – 1965 (turma 134)
  • Organizador da I Jornada à Europa dos Alunos da FMUSP – 1964
  • Arrimo de família, deu aulas no cursinho Di Tulio, enquanto universitário
  • Durante os “anos de chumbo”, optou pela luta armada contra a ditadura militar: tornou-se um “fora-da-lei”, um combatente (ou, se preferirem, um terrorista) da ALN – Ação Libertadora Nacional; depois, como dissidente, um dos lideres da MOLIPO – Movimento de Libertação Popular

Neste post procuramos relatar os fatos de seu reaparecimento, ou seja, da revelação ao mundo de sua nova atividade – e o início de sua vida clandestina

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Ao longo dos tempos, as formaturas de cursos superiores foram comemoradas com jubilo e alegria, tanto pelos graduados quanto por seus amigos e familiares. Aa programações, bailes, jantares e festas, além das habituais solenidades de colação de grau, eram atividades “obrigatorias e convencionais”. O Boanerges foi um revolucionário, inclusive, nesta materia: criou a Jornada à Europa, a ser realizada no 5º ano da turma, nas férias de meio de ano, como início das comemorações do final do curso. Não tenho maiores informações de como arrecadou e de como organizou tal viagem, mas ela foi um sucesso!

(veja um curto relato clicando aqui):

Boanerges tornou-se um ícone de sua turma da Medicina, muito estimado pelos seus colegas, tendo sido inclusive escolhido por eles para ser seu orador na colação de grau.  Uma vez formado, em 1965, fez residência no HC, na clinica…………….. (sem maiores informações)…

Passou a exercer suas duas profissões: plantões como médico e escritorio de advocacia nas imediações das “Arcadas”.

O que não se sabia, é que tinha uma terceira atividade…

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Quando de suas formaturas (1965), nosso pais já vivia, há pouco mais de um ano, um regime de exceção por força da revolução de 31 de março – muitos a chamam golpe militar de 1º de abril, com o que Boanerges absolutamente não se alinhava. Muito pelo contrário, não admitia tal situação! Era um ferrenho opositor e, idealista que era, optou por engajar-se na luta armada, no início de 1968, filiando-se à Ação Libertadora Nacional, fundada por Carlos Marighella, onde passou a ocupar posição de destaque.

Nem seus colegas mais próximos da 48ª, conheciam essa sua “segunda personalidade”… e foi assim até os primeiros dias de junho de 1969…

Um assalto à agência do Banco Tozan (Grupo Mitsubishi), na Avenida Penha de França, na capital de São Paulo.

Um assaltante é baleado e levado a um pequeno hospital da periferia… E o Boanerges reaparece, revelando  aseus colegas, e ao mundo sua “nova personalidade

A edição do “Diario da Noite” de 7 de junho de 1969 relata, tal qual um thriler hollywoodiano, o atendimento ao assaltante/guerrilheiro, sendo Boanerges, o protagonista da hostoria.

Como a foto do recorte de jornal é de péssima qualidade, a leitura estará muto prejudicada; assim, todo seu texto está reproduzido, da “melhor forma possível”, inclusive com a má redação e as redundâncias do repórter de então…

 

DIARIO DA NOITE – 7 de junho de 1969

Levaram Terrorista a força

“Fato absolutamente inédito ocorreu no interior do Hospital e Maternidade “Boa Esperança” no dia de ontem, onde uma equipe de médicos reunida apressadamente realizou delicadíssima intervenção cirúrgica em paciente homem que, tudo leva a crer que não é outro, senão o bandido que foi ferido durante o tiroteio travado na manhã de 5ª-feira última, quando uma quadrilha de terroristas foi assaltar a filial do Banco Tozan SA, da Penha, ocasião em que o soldado PM Boaventura Rodrigues da Silva foi morto segundos depois de ferir um dos assaltantes.

A recepcionista do Hospital e Maternidade “Boa Esperança”, situado no bairro do Capão Redondo, subdistrito de Santo Amaro, recebeu um telefonema do medico Boanerges de Souza Massa que trabalha naquele nosocômio como plantonista. Queria urgentemente falar com o médico que estava de serviço. Atendido pelo seu colega Antonio Marmo Lucon, Boanerges disse-lhe que estava à cabeceira da cama de um seu cliente, e que este havia sido atropelado e necessitava de uma intervenção cirúrgica imediata. Pediu que seu colega preparasse a sala cirúrgica e que, ao mesmo tempo, providenciasse a ida ao hospital de um neurologista e de um cirurgião, bem como cuidasse das demais medidas necessárias. Informou ainda que seguiria com o enfermo para o hospital devendo chegar em alguns minutos.

Em vista de que o médico Boanerges trabalhando naquele hospital há algum tempo, sendo portanto pessoa bastante conhecida e muito relacionada (já havia realizado operações cirúrgicas em clientes sob a sua responsabilidade), o médico que o atendeu não teve dúvidas em preparar a sala de cirurgia e, ao mesmo tempo, tomou todas as providências para que tudo estivesse perfeitamente pronto quando lá chegasse o enfermo.

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Realmente, pouco depois, trazido em um carro de aluguel, chegava ao Hospital “Boa Esperança” o médico Boanerges, trazendo um homem com as vestes bastante ensanguentadas e com uma enorme bandagem na cabeça.

Enquanto o medico Boanerges se dirigia para o interior do estabelecimento, indivíduos que estavam em sua companhia se incumbiram de colocar o doente num carrinho e leva-lo até a sala de cirurgia, onde se encontravam a postos os médicos Antonio Marmo Luco, Pedro Américo Flores Nicoletti, João Miguel Rojas Fº diretor fo hospital e Luiz Carlos Machado, bem como o enfermeiro Helio Damiance Pereira.

Uma vez concluída a assepsia e limpeza da ferida, os médicos iniciaram a operação, ocasião em que já se encontrava também o médico Boanerges de Souza Massa. Durante 4 horas, a equipe dos médicos lutou no sentido de evitar que o ferido sucumbisse, pois já tinha perdido grande quantidade de sangue, e seu estado geral era desolador.

Assim que o médico cirurgião iniciou seu trabalho, constatou que o paciente, ao contrario do que lhe tinham afirmado, não apresentava ferimentos que indicassem terem sido provocados por atropelamento, mas sim dois ferimentos indiscutivelmente causados por projeteis de ama de fogo, sendo um no frontal do lado direito com saída na cavidade auricular do mesmo lado, e um outro no abdome do lado esquerdo com saída na região intercostal direita.

Durante as 4 horas que durou a intervenção cirúrgica, os médicos nada falaram que pudesse colocar o colega responsável pelo enfermo em situação difícil. Concluída com êxito a operação, o paciente foi entregue aos enfermeiros, a fim de que fosse removido para uma sala especial, onde imediatamente passou a receber sangue e soro.

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Antonio Marmo Lucon, Pedro Américo Flores Nicoletti, Luiz Carlos de Machado e o diretor, João Miguel Rojas, os médicos, dirigiram-se para a sala da diretoria do hospital, solicitando a presença do médico Boanerges de Souza Massa. Nessa ocasião, todos eles já haviam tomado a deliberaração de comunicar o fato à Policia, uma vez que o desconhecido, ao contrario do que afirmara Boanerges, não tinha sido atropelado, mas sim, ferido a tiros de revolver.

-“O senhor vai nos desculpar, Doutor Boanerges – disse o diretor do hospital – mas somos forçados a levar o fato ao conhecimento das autoridades policiais. Trata-se de um caso que elas tem que tomar conhecimento. Nós não podemos manter sigilo, já que o seu paciente foi ferido a tiros de revolver.”

Entre o medico Boanerges e os demais, travou-se acalorada discussão, uma vez que o primeiro não queria, em hipótese nenhuma, que as autoridades policiais tomassem conhecimento do fato. Nessa altura dos acontecimentos, alguém bateu à porta da sala que, aberta pelo médico Boanerges, permitiu a entrada de um homem de mais ou menos 40 anos de idade, estatura regular, forte, de cabelo grisalhos, e que tinha chegado ao estabelecimento em companhia do enfermo. Apresentado por Boanerges aos demais médicos como sendo um dos parentes do enfermo, este passou então a tomar parte da discussão, defendendo, naturalmente, o ponto de vista de que o caso não deveria ser levado ao conhecimento da policia.

-“Uma vez que os senhores não querem concordar em fazer silencio em torno deste meu caso, sou forçado a tomar uma atitude – disse o medico Boanerges – e a atitude é esta…” Sacou da cintura um revolver, apontando-o para os médicos. O desconhecido fizera a mesma coisa. Ambos apontavam duas armas contra os cirurgiões que, apanhados de surpresa, nada puderam fazer. Mesmo porque, perceberam que qualquer gesto em defesa do principio que estavam defendendo, poderia ser fatal.

Sob a mira dos revolveres, os médicos Antonio Marmo Lucon, João Miguel Rojas e o enfermeiro Helio Demiance Pereira, foram empurrados para dentro de uma sala onde foram trancados a chave. Ainda com as armas voltadas para os médicos Pedro Américo Flores Nicoletti e Luiz Carlos Machado, os dois obrigaram que os auxiliasse: –“Os senhores vão ter que nos ajudar a retirar daqui o meu paciente. E vamos andar depressa”.

Sempre sob a mira das armas de fogo, os dois médicos dirigiram-se ao quarto onde o indivíduo se encontrava, sendo forçados a ajudar Boanerges e seu companheiro, a retirá-lo da cama, colocá-lo em um carrinho-maca e levá-lo até a porta do hospital, onde um outro homem do grupo de Boanerges, já os esperava sentado ao volante de uma das ambulâncias do Hospital Boa Esperança.

Tendo ainda os médicos sob a mira de sua arma, Boanerges dirigiu-se ao laboratório do hospital, onde apanhou frascos de soro e de plasma sanguíneo, bem como apetrechos médicos cirúrgicos.

Assim que o recém operado foi colocado dentro da ambulância, uma Kombi de chapa 101543, Boanerges colocou-se ao seu lado, enquanto que seu companheiro sentou-se ao lado do motorista, tendo na mão a arma pronta para disparar ao menor movimento que viesse a barrar-lhes os passos

Imprimindo certa velocidade à ambulância, o motorista atingiu em poucos segundos a estrada de Itapecerica, dirigindo-se para os lados daquele vizinho município. Valentemente, os médicos do hospital tomaram um carro e partiram em perseguição da ambulância. Tinham eles a esperança de que aquele veiculo parasse de um momento para outro, em qualquer lugar da estrada, isto porque o mesmo apresentara na manha de 3ª feira, defeitos mecânicos que precisavam ser reparados. Isto, entretanto, não aconteceu, e a ambulância, o medico Boanerges, o paciente e os 2 outros desconhecidos desapareceram das vistas dos médicos operadores, rumando para os lados do Morumbi.

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Oontem, o médico João Miguel Rojas, diretor do Hospital e Maternidade Boa Esperança, compareceu perante o delegado Adolfo Tiossi Bernardes, que se encontrava de plantão no 11º Distrito Policial, a fim de contar o que tinha acontecido, registrar a queixa de roubo da ambulância e pedir medidas policiais em torno do sensacional caso.

Segundo os médicos que operaram o desconhecido, que foi registrado naquele estabelecimento com o nome de Dorival Nunes, ele é um homem de mais ou menos 40 anos, de estatura regular, branco, de pele morena clara, cabelos lisos e pretos.

Entrevistado pela imprensa, o medico Pedro Americo Flores Nicoletti, também diretor do hospital, informou que a operação foi coroada de êxito, e que o paciente poderá sobreviver, desde que seja atendido dentro das normas médicas indispensáveis para um caso como aquele. Nesta mesma entrevista, o medico desmentia a informação obtida anteriormente pela reportagem de que Boanerges tinha levado medicamentos e aparelhos para dar continuidade ao tratamento do paciente desconhecido.

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Moradores da rua Barão do Triunfo, no bairro do Ipiranga, algum tempo depois, entraram em contato com a autoridade policial do 21º Distrito, comunicando-lhe que naquela via estava abandonada, desde as primeiras horas da manhã, uma ambulância com letreiros do H.M.B.E. de chapa 10 1543. Aquela autoridade entrou em contato com o delegado de plantão do 11º Distrito a fim de que fossem tomadas providencias para a retirada do veiculo do local.

Por determinação das autoridades policiais, todos os hospitais de São Paulo e imediações foram cientificados de que deverão comunicar a policia qualquer fato que possa ter ligação com os acontecimentos ocorridos anteontem no HBE.

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EDIFÍCIO ARIANNE – RUA PAULA NEY 381 – ACLIMAÇÃO

Segundo informações obtidas pela reportagem do DIARIO DA NOITE, o medico Boanerges de Souza Massa é também formado em advocacia, profissão que também exercia em um escritório do Largo de São Francisco. Boanerges casou-se há pouco mais de 3 meses e estava residindo no apartamento 61 do prédio nº 381 da Rua Paula Nei, no Bairro da Aclimação.

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Observações do editor:

( 1ª ) Sobre Boanerges de Souza Massa, João Miguel Rojas Filho e Antonio Marmo Lucon:

  • eram colegas de turma, a 48ª da FMUSP, formados em 1965
  • foram juntos á Europa no 5º ano, em 1964
  • eram amigos, companheiros da vida acadêmica na FMUSP
  • certamente os diálogos descritos pelo repórter foram bem diferentes do relatado… nunca se chamariam de “senhor” – e a troca de palavras e ameaças havidas, devem ter sido “recheadas” de muita emoção

( 2ª ) O guerrilheiro baleado, registrado com o codinome “Dorival Nunes”, chamava-se Francisco Gomes da Silva, segundo publicaçõess oficiais. Fora submetido, no evento contado na reportagem, a uma cirurgia multi-disciplinar, já que havia um ferimento crânio-encefálico e outro abdominal, com oríficio de saída torácico, contralateral – nao temos o relato exato, mas com certeza ele “ganhou” uam craniotomia, uma laparotomia e, no mínimo uma micro-toracotomia para drenagem. Ao que consta estava muito bem no pós operatório imediato.

( 3ª ) Caso haja interesse, há farta documentação literária sobre a vida e a obra de Boanerges de Souza Massa.

3 comments

  1. Marisa 28 janeiro, 2024 at 16:36 Responder

    Impressionante o relato feito pelo jornalista. Vivemos essa época de terror de ambas as partes. Essa e outras intervenções cinematográficas ocorreram. Período que muitos de nós gostaríamos de esquecer.

  2. Eduardo Verani 28 janeiro, 2024 at 18:15 Responder

    Boanerges foi meu professor num cursinho intensivo que fiz no di Tullio.
    Era professor, também de biologia, assim como o Lúcio Tedesco. Tomaram rumos diferentes, ambos inteligentíssimos.
    Boanerges, que morava perto do Patrício, na Rua Paula Ney, Aclimação, me decepcionou. Uma inteligência que poderia ter tomado rumo diferente, mesmo com sua ideologia.

  3. Flávio Soares de Camargo 28 janeiro, 2024 at 18:55 Responder

    Caramba Berger, bela recordação destes eventos, já decorridos mais de meio seculo…
    Certamente Boanerges foi um genio, que seguiu um rumo diferente do nosso.
    Parabéns pela postagem – sempre tive curiosidade pelo personsgem.

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