sexta-feira, julho 26

VOANDO PARA O PERIGO! Flavio Soares de Camargo

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Idos de 1978 a 1988, foram 10 anos ainda sem boas estradas, o deslocamento sempre penoso, mas as saudades sempre existiram e foi difícil fazer a parceira Marcia entender que a vida nossa agora seria em São José dos Campos. Duas filhas em idade escolar e com a idade chegando em seu pai, fazendeiro em Araras e, sendo agrônoma, se viu num dilema familiar e de trabalho.

De São José a Araras são 250 km pela rodovia Dom Pedro I que, inaugurada nos finais da década de ’60, com pista única, sem conservação alguma, recebeu o apelido de “estrada da morte”; portanto, a opção que tínhamos era por São Paulo pela Dutra e, depois, para Araras pela Anhanguera.

Ela ia de ônibus na 4ª feira para a fazenda, e eu pegava as duas filhas na escola na 6ª a noite ou no sábado cedo, e voltávamos no domingo. Pouco prático, mas a medicina estava a mil por hora nesta época e era o sustento e a segurança econômica da família.

Depois de um acidente feio na marginal do Tietê, onde fiquei preso num engavetamento, fiquei estudando as opções, inclusive a ida para Piracicaba que é uma cidade bem perto de Araras. Tínhamos e temos em Pira dois colegas da 52ª, o Japur e o Verani, mas sofri forte resistência das equipes de minha especialidade. Hospitais fechados para um cirurgião que teria que viver de clinica não me apeteceu

O problema de deslocamento era muito comum nesta época pela falta de estradas, linhas aéreas e mesmo ônibus, e os médios e grandes empresários do agro-negócio ja vinham se deslocando de avião particular há bastante tempo. Foi a fome e a vontade de comer: São José dos Campos, a capital do avião, um aeroporto espetacular ao lado de minha casa e, idem em Araras, no caminho da fazenda ficava o aeroporto da cidade. Aeroclube movimentado e bem organizado em minha cidade, com poucos meses de treino intensivo ja estava com o brevê na mão. Começamos a ir de avião alugado do aeroclube para a fazenda.

Mas avião é como escova de dente, namorada, amante, esposa, não dá para ir pulando de um para o outro, pois demora um tempo para se adaptar as suas características, como potência, sensibilidade nos comandos, resposta às turbulências, etc. E eu não conseguia alugar o mesmo avião sempre. Um era de trem de pouso fixo e asa alta, outro asa baixa e trem de pouso escamoteável, hélice de passo fixo, outro passo variável; um infindável número de características diferentes, o que dificultava muito o uso constante de tanta variedade. Mas esquecer ou negligenciar qualquer das características é perigo na certa, e não dava para colocar paraquedas na Márcia e nas crianças. Então a opção de adquirir um avião particular foi o objetivo seguinte.

“VOX POPULI VOX DEI” é o adágio que costumo seguir na vida e nos meses seguintes tive longas conversas de hangar com todo mundo que usava e possuía um avião para trabalho ou lazer. Industrial ou alto poder aquisitivo, bimotores, sendo o AEROCOMANDER DA ROCKWELL na época o sonho de consumo dos caixas alta. Em seguida vinham os Bonanzas da Beechcraft, que tinham cauda em V na época, monomotor, um desenho extremamente sensual, trem de pouso retrátil, potentes, rápidos, caros; e logo de cara já iam me dizendo: “-avião para piloto e não para pé duro! Acho que eu tenho cara de pé duro! (jargão mais comum aeronáutico é manicaca)

 Aero Commander

 

Beechcraft Bonanza

No final das conversas e sabendo o uso que eu teria, distancia relativamente curta para avião, segurança, economia, e pouco treino, ou seja não me consideravam um piloto com P maiúsculo, só sobrou a linha CESSNA. Aviões feios, asa alta, cheios de protuberâncias, pois têm suporte para segurar as asas, lentos mas confiáveis, confortáveis, pois têm cabines largas, econômicos, manutenção extremamente fácil e, a característica principal, até EU servia para pilotar um CESSNA, avião com capacidade de entrar e sair de uma tempestade sem perder uma asa, pois elas têm um suporte de triangulação que os outros não tem, e pousa de forma fácil e em pistas curtas.

Cessna Skylane

Havia achado meu avião, agora era hora de comprar. Os primeiros vôos em aviões alugados me permitiram escolher o modelo SKYLANE, 4 lugares, motor 230 hp, potente para um monomotor, decolagem extremamente curta, cabine confortável com aquecimento, janelas que se abriam, uma porta de cada lado da cabine, janela traseira, um verdadeiro automóvel voador; quando eu dei a noticia para meu instrutor de vôo a resposta foi em cima: “ESTE AVIÃO É UMA MÃE.”

Depois de várias visitas a hangares, encontrei um que me encantou, PT DJR, amarelo, branco e marrom, semi novo, de um fazendeiro de São Paulo, com fazenda na barranca do rio Paraná em Pirapozinho. Um senhor de idade e piloto também. Foi amor a primeira vista – a única coisa que estranhei era ele ter na fuselagem uma frase, “DAMA DAS CAMÉLIAS”. Apesar da idade, o velhinho era romântico!!

Levei o meu instrutor junto e ele caiu de costas com o estado espetacular do avião, praticamente zero horas de vôo e num estado de saído da fábrica. Compra feita, levei para São José dos Campos, ou seja o instrutor levou o avião e eu voltei guiando meu carro .

Ai começou minha rotina familiar, a Márcia ia com um piloto na 4ª feira até Araras, apenas meia hora de vôo, e eu pegava as crianças na escola na 6ª a tarde ou sábado cedo, eu ia para lá e voltávamos no domingo a tarde. Trocamos 5 a 6 horas de automóvel por 30 minutos de vôo: nada mal!

A meteorologia não era tão desenvolvida, mas tínhamos acesso direto por telefone comum às torres de controle de São José dos Campos e Viracopos. As informações pouco antes de decolar davam uma boa previsão do tempo na rota e num período muito curto de vôo. A base aérea de Pirassununga fica a apenas 10 minutos de vôo da fazenda e era fácil de chamar enquanto taxiava o avião antes da decolagem. Enfim era uma rotina bastante segura. Num ano cheguei a fazer esta rota 54 vezes, ou seja, fui todos os finais de semana!

Até que… numa tarde quente de verão, domingo de dia claro, calor intenso, 15:30 horas, família a bordo, aeroporto de Araras vazio, algumas nuvens esparsas, mas se movimentando com velocidade, indicando forte turbulência. Ao longe uma pequena nuvem em torre, confirmando a turbulência; havia checado com São José dos Campos, que indicou a mesma situação atmosférica. Check list sendo feita, motor girando macio, chave do tanque de gasolina em ambos, taxiando e chamando Pirassununga pois é espaço aéreo da base aérea da FAB. Neste dia a Márcia estava no banco de trás com as duas filhas, uma de cada lado, cintos passados, portas travadas, vento no eixo da pista, 20 graus de flaps, teste dos magnetos (o D, o E, ambos), todos nos parâmetros, potência total, marcha lenta, enfim, nada de novo, rotina pura; soltei os freios e fui dando potência no manete até colar no batente, potência total, velocidade chegando rápido, V1, velocidade de não parar mais, V2 velocidade de rotação, puxei o manche e pulamos no ar, estávamos voando. A turbulência era forte, mas é sempre assim nos dias muito quentes. Chamei na subida Viracopos pois estava entrando no espaço aéreo dele que confirmou a chamada e me liberou em seguida para a rota e altura pedida, 2 500 metros.

Campinas sugeriu 3.000 metros, OK, apenas rotina; foi ai que algo me chamou a atenção que seria um dia diferente: uma nuvem clara de pequeno tamanho emitiu um raio para outra que não era tão grande assim e não estava carregada; 2 pequenos cumulus emitindo um raio? Forte eletricidade estática, bem, era um dia muito quente e isto poderia ocorrer embora eu nunca tivesse visto.

Chamei a torre de São José que informou as mesmas condições meteorológicas, mas que para o lado de Caçapava estavam se formando fortes nuvens de chuva. Não me preocupei, pois só faltavam 20 minutos de vôo. Foi nesta hora que Pirassununga avisou que estava fechando o aeroporto devido a uma forte pancada de chuva; em seguida, Cumbica também fechou, Campo de Marte idem, o quadro estava se transformando rapidamente. Ainda eu tinha Viracopos aberto atrás e São José dos Campos à frente. Em seguida Viracopos avisou que estava operando somente por instrumentos, eu estava entrando numa situação complicada, pois meu treinamento era para vôo visual e eu fazia, de vez em quando, um pouso noturno com instrutor para alguma situação de emergência e percebi que talvez a vez fosse agora. São José dos Campos me chamou querendo saber minha posição, pois estava ventando forte e as nuvens que se formaram em Caçapava estavam vindo para São José e teriam que fechar o aeroporto daqui a pouco. Avisei a situação que me encontrava e pedi todo auxilio possivel para o pouso pois eu teria que entrar em vôo por instrumentos em seguida e não tinha aeroporto alternativo para mim. Na minha frente uma massa negra de nuvens.

Neste instante estava sobre a SERRA DA MANTIQUEIRA, um paliteiro de picos de montanhas cobertas de matas. Passei sobre Bragança Paulista um pequeno aeroporto visivel mas já sob chuva, e eu teria que descer rapido e na vertical, coisa impossivel, pois eu estava a 3.000 mts. Abaixei o banco para olhar somente para os instrumentos de voo e o horizonte artificial, luz vermelha de emergência no painel para não ter desorientação espacial não olhei mais pelo plexiglass.

Em seguida São José me avisou que Jacarei estava com sol ainda, e que se eu fosse para lá, ele permitiria eu descer na pista ao contrário, pois o vento era de través e eu faria um pouso direto antes da chuva. Radiogoniômetro na torre de radio de Jacarei, curva leve de 5 graus a D, mal deu para nivelar as asas mergulhei nas nuvens negras, o choque foi terrível, tanto pelo impacto da turbulência nas asas como pelo barulho da chuva na fuselagem. Aí que eu valorizei a palavra AVIÃO MAMÃE, os montantes seguraram as asas com mãos de ferro, uma mão no manche para manter as asas niveladas, girando de um lado para o outro numa velocidade doida e afundando a manete quando ele subia que nem elevador expresso 500 a 1000 mts em segundos e a seguir tinha que desacelerar tudo pois descia como uma pedra outro tanto. Movimentos de um espadachim numa luta de morte, coisa que não estava longe da verdade. Junto disto, um olho no sensor de formação de gelo no carburador e se lembrar onde estava o botão de ar quente para desfazer o gelo .

Suando em bicas, mudo, tudo preto e somente a luz vermelha dos instrumentos de emergencia brilhando discretamente. O barulho na fuselagem assustador, os trancos eram de tirar o folego e o frio na barriga quando o avião descia era uma sensação de perigo iminente e terminal, apenas o olho nos instrumentos mostravam que ainda estavamos voando com algum tipo de controle.

Só percebi que tinhamos já saido daquela loucura quando a torre de São José que estava preocupada e estava nos procurando com binóculos avisou que eles estavam-nos avistando e que girassemos a E, e fizessemos aproximação e pouso direto. Tudo não durou mais que 10 minutos… no chão, taxiando, só ai olhei para o banco de trás e vi a Marcia e as crianças de olhos arregalados, umas grudadas nas outras, rezando.

Eu chorei de verdade, pois foi por pouco, muito pouco…

 

 

9 comments

  1. Décio Kerr Oliveira 27 julho, 2019 at 08:57 Responder

    Que sufoco! Só de ler seu relato tive umas crises de dispneia suspirosa. E depois disto, como foram os voos seguintes?

  2. Flavio Soares de Camargo 29 julho, 2019 at 21:20 Responder

    Não Rui , cada data da vida uma etapa vencida. Com as boas estradas atuais , nesta distância , não justifica um avião .

  3. Waldir W V Cipola 21 agosto, 2019 at 20:34 Responder

    Flávio que sufoco !!!
    Sou piloto também e graças a Deus ainda não entrei numa fria desta
    Lendo sua descrição fiquei imaginando a cena.
    Parabéns!

  4. FLAVIO SOARES DE CAMARGO 20 julho, 2022 at 08:44 Responder

    Estou, neste instante, com um cliente empresário que está pensando em comprar um avião para dar conta do seu trabalho.
    Depois deste relato, ele desistiu de um avião moderno de fibra de carbono e está procurando um Skylane.
    Embora tendo um desenho antigo, tem o menor índice de acidentes da aviação geral.

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