sábado, julho 27

Ética, integridade, caráter têm nome: Arrigo Antonio Raia, por Eduardo Berger

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O Professor Arrigo Antonio Raia faleceu no mesmo mês em que comemoramos nosso Jubileu (outubro/2019), recém completados 107 anos de vida! Sua influência e seu tempo de dedicação à medicina, ao ensino, a pesquisa não têm precedentes na história da medicina brasileira.

Meu contato com ele foi praticamente nulo na Universidade, não tive o privilégio de conviver com ele: à época em que frequentei a Faculdade e o Hospital das Clínicas, anos 60/70, havia um forte “divórcio” entre as clínicas cirúrgicas do HC da FMUSP (eram três!), e eu era “da 2ª C.C., Serviço do  Professor Edmundo Vasconcelos”.

Entretanto, ainda no início de minha vida profissional, vivi uma experiência inesquecível com aquele grande homem! Creio não ter agradecido a ele, à época, com a ênfase que o caso merecia! Vou contar, homenageando-o humildemente, tentando minimizar minha falha:

Desde meados de minha residência, eu trabalhava na então Gastroclínica – hoje Hospital Edmundo Vasconcelos – dando plantões e auxiliando/instrumentando cirurgias do “Vasco”. Assim que findou minha residência, uma grave desavença com a “alta direção”, fez com que esse meu chefe fosse impedido de permanecer na instituição e, assim quiz o destino, lá me fixei e atuo até os dias de hoje (!) – foi ótimo para minha carreira; eu diria, foi um “feliz desencontro”…

Porém, um novo chefe assumiu, e ele era, talvez, ainda mais “tirano” do que o velho Vasconcelos – era uma época de pródiga “clientela particular” e tudo era direcionado para ele. “Carregávamos o piano”, eu, Ranoya e Lobo, mas a ‘grana pesada”, já me entenderam, era para ele. Justiça seja feita: se o cliente, em sua chegada declinasse o nome de seu médico de preferência, a chefia aceitava e a coisa ficava boa pra nós. Nunca me queixei – tinha, não muitos, mas suficientes clientes que me escolhiam e com isso progredi bastante na profissão e nas finanças, criei os filhos, provi a família…

Eis que, ocorre o fato, motivo desse relato… num final de semana, aí por 1974…

Um bem conhecido e muito abastado industrial paulistano, dono de grande empresa de eletrodomésticos, estava doente com certa gravidade, e não era cliente de nenhum médico… Homem idoso (9ª década), rebelde, resistente aos esculápios; tudo que tinha – “frieiras, resfriados ou dores de barriga” – se socorria de um amigo, tão ou mais idoso do que ele, companheiro de infância, conterrâneo de terras da Lombardia e vindo ao nosso país na mesma leva migratória, e… médico dos funcionários de sua indústria – claro que tinha um número de inscrição no CRM, podia assinar as fichas médicas dos operários, mas, digamos, tinha conhecimentos rudimentares de nossa honrosa profissão (o emprego naquela empresa, generosamente oferecido pelo rico amigo protetor, era seu ganha-pão…). Consta que o dito industrial jamais consultara outro colega, e deu-lhe uma forte carraspana, com seu acento típico dos oriundi: -“Entõ, suo stupido? Você non é medico? Dottore? Me dói a bariga, tenho febre alta e você no resolve?? Me sai daqui agora!! Vá atrás dum specialista, um gastro! No é assim que se chama? E me traz um bom! Mas tem que ser bom mesmo!!”

Pobre dottore... não tinha o menor contato com a classe médica, não conhecia ninguém… era domingo! Aí… EUREKA! Lembrou de uma placa que via do carro, no caminho de casa: “GASTROCLÍNICA”! Estou salvo, pensou,  e para lá se dirigiu.

Foi atendido pelo meu saudoso amigo, funcionário pioneiro do Hospital, Senhor Lourenço (acho que era José), uma pessoa excelente, um tipo faz-tudo: recepcionista, segurança, porteiro, etc: -“Io preciso de um gastro, mas tem que ser bom mesmo, para tratar do meu chefe” – e um pouco tímido, envergonhado, quando inquirido se tinha algum de sua preferência (ele não conhecia nenhum…), saiu com essa: -“No me ricordo o nome direito, é meio alemão, Burg, Borg”… E o Lourenço: “Berger?”-Echo! Perfetto! Esatto, é questo mesmo”!! E assim, por um acaso total, fui chamado de urgência para atender um grande “capitão da indústria”, como se eu fosse um destacado especialista da metrópole paulistana… Fomos de imediato à mansão do dito cujo, e o trouxemos ao hospital para exames.

Deixa eu encurtar: idoso, bem emagrecido, com importante dor em faixa no andar superior do abdome, com febre alta, leucograma muito alterado e amilase um pouco elevada. Uma rudimentar seriografia de estômago e duodeno pareceu-me identificar um certo alargamento do espaço retro-gástrico.  E eu, fiz o diagnóstico: -“É um abcesso do corpo pancreático”. Louco, não!? Que tempos vivíamos!! Exames de ultrassom engatinhavam (e mais na área obstétrica), tomografia nem em sonho… Certamente foi algo mais intuitivo… alguns dirão que fui guiado por “forças espirituais”.

Aí, indiquei laparotomia exploradora – era do que dispúnhamos. O filho do paciente, pouco mais velho do que eu, inquiriu se não seria melhor termos outra opinião, já que eu era muito jovem e que ele, como herdeiro do paciente, sentia-se muito sobrecarregado com a responsabilidade de autorizar o procedimento. Concordei é claro! Aí veio um insólito pedido: que eu sugerisse alguém! Achei que não me cabia, que seria melhor sua própria família escolher… Ele insistiu, confiava em mim.  E agora? Quem indicar? Desfilaram em minha mente alguns nomes, todos brilhantes cirurgiões, nossos mestres (Paulo Branco, Bove, Goffi, Simonsen, Silvano, Vasconcelos, quem?). Não sei por que “cargas d’água” saiu, quase de imediato: “Professor Arrigo Raia!” Outra intuição?… Talvez pela facilidade que teriam em se comunicar (idioma italiano).

E assim foi: eu, que nunca havia trocado uma palavra, um gesto com ele, enviei ao ilustre mestre um relatório com a história clínica, os dados de exame físico, os resultados dos exames subsidiários e, finalizando, minha hipótese diagnóstica e a conduta cirúrgica que eu havia optado. No meu papel timbrado de receituário, constava claramente impresso o meu CRM: 14.564!  Imagino algo como se recebêssemos, atualmente, coisa semelhante, de um doutor que tem seu CRM mais alto do que seu número de plaquetas por milímetro cúbico de sangue!!

Um ou dois dias depois, tive uma das maiores e mais gratas surpresas de minha vida: o “velho” Arrigo (teria uns sessenta…), com sua recente conquista de Professor Titular do Departamento de Cirurgia da FMUSP, no auge de sua brilhante carreira, no esplendor de sua capacidade técnica, com todo carisma e reconhecimento que gozava de toda comunidade médica, respondeu em três ou quatro linhas, que concordava com tudo que eu havia exposto, inclusive com o diagnóstico e com a conduta traçada! Que demonstração de integridade, de caráter, de ética!! Que homem extraordinário! Certamente, nos dias de hoje e, por que não dizer, nos de então também, 99% dos colegas faria, no mínimo, um muxoxo, uma caretazinha, um pequeno comentário, do tipo: “bom moço!”, “Jovem ainda!”. “Tem futuro!” E pronto, certamente ficaria com o cliente… e com os honorários, para si!

Poucos dias depois, auxiliado pelo Flavio Queiroz, operei o paciente; quando abri a “retro-cavidade”, palpei o pâncreas, nitidamente entumecido, bem aumentado, meti uma agulha grossa, aspirei e, quando veio aquele pus amarelo, espesso, meu “auxiliar” largou por um instante os instrumentos, esticou a mão espalmada e me cumprimentou, dizendo: –“Parabéns pelo diagnóstico”!

Enviei uma cartinha de agradecimento ao grande Professor Arrigo, que nem de longe representou a admiração que passei a ter por ele.

2 comments

  1. admin 15 novembro, 2019 at 21:11 Responder

    ARRIGO RAIA NASCEU NO MESMO ANO QUE A FMUSP (1912)

    QUANDO AMBOS COMPLETAVAM UM CENTENÁRIO, ELE ESCREVEU ESTA CARTA:

    Uma vida longa como a da FMUSP

    Nasci em Araraquara, no interior de São Paulo, dia 23 de agosto de 1912. Em breve completarei meu centenário, junto com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), escola em que me formei e vivi grande parte da minha vida. Eu sou a única pessoa viva que acompanhou a faculdade por todos os lugares por onde ela passou. Primeiro na Rua Brigadeiro Tobias, em seguida na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e depois minha turma inaugurou os edifícios da FMUSP na Avenida Dr. Arnaldo, onde está até hoje. A medicina chegou à minha vida muito cedo. Meu avô materno era italiano e médico. Ele veio para o Brasil e desde pequeno eu o acompanhava nas visitas aos doentes, no trole ou no carro para passear, então com 8 anos eu já tinha vontade de ser médico cirurgião.

    Entrei na FMUSP em 1931 e me formei em 1936. Nos primeiros três anos, o curso era ministrado na Avenida Dr. Arnaldo. No quarto ano passamos para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e a princípio eu me decepcionei, porque naquela época a cirurgia era muito restrita e nos casos das cirurgias maiores o índice de mortalidade era muito grande. O panorama mudou muito quando, em 1945, o Prof. Dr. Benedito Montenegro assumiu a direção da primeira cadeira de clínica cirúrgica e o Prof. Dr. Alípio Corrêa Netto assumiu a segunda cadeira, em 1946.

    No último ano da faculdade, o governo italiano ofereceu uma passagem para 12 alunos. Em 1937, fomos em caravana para a Itália e tivemos a oportunidade de conhecer diferentes clínicas. Como eu já havia terminado o curso, estendi a viagem e fui para a Alemanha. Voltei para o Brasil em 1938 e regressei para trabalhar com o Prof. Alípio. A partir daí, desenvolvi toda a minha carreira na FMUSP. Em 1939, me tornei o terceiro assistente da cadeira de Clínica Cirúrgica, dirigida pelo Prof. Dr. Alípio. Em 1941, fui nomeado para exercer o cargo de Professor de Enfermagem Cirúrgica da Escola de Enfermagem Obstétrica da FMUSP. Em 1943, me tornei Livre Docente de Clínica Cirúrgica. Em 1961, conquistei, através de concurso, o título de Professor Adjunto. Em 1970, assumi o cargo de Chefe de Disciplina do Aparelho Digestivo do Departamento de Clínica Cirúrgica. E em 1973, após concurso, conquistei o título de Professor Titular do Departamento de Cirurgia.

    Logo após me tornar Professor Titular da cirurgia do aparelho digestivo, adotei uma conduta pioneira, acredito que no mundo, dividindo a especialidade em grupos dedicados, respectivamente, a cada um dos setores da disciplina, entregando a chefia a jovens cirurgiões que gradativamente se transformaram em líderes na especialidade. São eles: esôfago, Prof. Henrique Walter Pinotti; estômago, Prof. José Gama Rodrigues; colo, reto e ânus, Profs. Daher Cutait e Angelita Habr Gama; fígado e hipertensão portal, Prof. Silvano Raia; e vias biliares e pâncreas, Prof. Marcel Cerqueira Cesar.

    Fui um professor democrata, dei liberdade aos assistentes para que desenvolvessem suas atividades na disciplina, de tal forma que sete deles se tornaram professores titulares: cinco da FMUSP e dois em outras universidades.

    Com a colaboração, contribuímos para a evolução da cirurgia digestiva em nosso meio, de tal sorte que, ao fim do meu mandato de professor, eram praticadas todas as técnicas cirúrgicas para tratamento das doenças do apare- lho digestivo, da apendicectomia ao transplante de órgãos.

    Após muitos estudos, em 1971, eu e os Profs. Silvano Raia e Marcel Cerqueira Cesar Machado realizamos o primeiro transplante de fígado. O paciente sobreviveu 20 dias. Em 1974, fui convidado a participar da comissão médica que ajudaria na instalação e estruturação do Hospital Universitário (HU), auxiliando na escolha e aquisição dos equipamentos.

    Durante minha trajetória publiquei três livros: “Manual de Pré e Pós-operatório”, com a colaboração dos Drs. Joel Faintuch e Marcel Cerqueira Cesar Machado; “Manifestações Digestivas da Moléstia de Chagas” e “Tratado de Clínica Cirúrgica Alípio Corrêa Netto”, com a colaboração do Dr. Euriclydes de Jesus Zerbini. Fui agraciado com 33 prêmios concedidos por sociedades científicas e congressos médicos, destes dez foram outorgados pela Academia Nacional de Medicina e um pela Academia Americana pelo progresso da ciência de Nova York. Sou membro de 14 sociedades médicas nacionais e internacionais e, dentre elas, membro emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões.

    Recentemente, fui homenageado em uma comemoração do centenário da FMUSP como aluno mais antigo da faculdade. Fiquei muito feliz por ter sido lembrado e pelo reconhecimento de todo meu trabalho junto à Faculdade e ao Hospital.

    Além da minha família, a cirurgia foi minha paixão durante toda a vida: operei até meus 86 anos. Já estou no segundo casamento, tenho uma filha, dois netos e quatro bisnetos. Hoje, com quase 100 anos, minha maior alegria e diversão é brincar com meus bisnetos, e também faço caminhadas e musculação. Sempre que posso, viajo para rever minha cidade, Araraquara.

    Bendigo o momento em que decidi seguir a carreira médico-cirúrgica. Muito trabalhei, muitos exemplos transmiti, muito ensinei e muito recebi em troca. Na fase atual de minha vida, sinto-me realizado e com experiência suficiente para dizer aos mais jovens que vale a pena todo o sacrifício que a carreira médica exige. Além de tudo, nos oferece um ocaso tranquilo e feliz pela nítida noção do dever cumprido.

    Prof. Dr. Arrigo Antonio Raia Médico Cirurgião e Professor Emérito da FMUSP

  2. Joel Faintuch 17 novembro, 2019 at 22:52 Responder

    A história do Berger é emocionante. Sou até certo ponto suspeito para comentar sobre o Arrigo Raia, pois trabalhei sob sua tutela na 1ª Clínica Cirúrgica. Como a maioria dos cirurgiões de renome da época, era um tanto autoritário e não dava muita atenção para jovens, mesmo seus assistentes jovens. Escrevi três livros no período, um deles com duas edições, logicamente incluindo o nome dele. Só tomou conhecimento quando agendei com a secretária, para lhe entregar um exemplar. Em todas eventualidades recebeu a obra sem abrir a boca, sem um comentário. Porém por baixo da secura e indiferença, havia um bom coração. Nunca soube de uma iniqüidade, de haver feito mal para alguém.
    Ao completar 100 anos, convocou os antigos discípulos para um encontro. Não só me reconheceu e me recebeu com carinho, como perguntou do meu filho. De alguma maneira soube do mais velho. Talvez porque à tarde dava aulas no departamento. Minha esposa tinha aulas alguns dias. e sem empregada com quem deixar, a partir dos 2-3 anos às vezes o carregava junto. Salomão era disciplinado e se comportava bem.

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