segunda-feira, maio 20

Professor Edmundo Vasconcelos e a Cadeira 10 da Academia Paulista de Letras

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Edmundo Vasconcelos, certamente, foi uma personalidade ilustre de seu tempo. Deixou seu nome na história da medicina de nossa pátria, sua fama ultrapassou nossas fronteiras. No início dos anos ’60, visitou a Universidade de Roma, ciceroneado por famosíssimo cirurgião cardiovascular, o Professor Pietro Valdoni (célebre, entre outras façanhas, por ter operado o papa Paulo VI). Diante da sua equipe, o médico italiano assim anunciou Vasconcelos: – Signori, vi presento il più grande chirurgo del mondo!  O brasileiro não cabia em si de orgulho – como era de hábito. ele cultivava sobremaneira seu próprio ego…

Entretanto, além do projeção singular que teve em seu ofício, Vasconcelos destacou-se, também, com sua produção literária.

Ocupou a Cadeira nº 10 da Academia Paulista de Letras, por mais de 25 anos. Quando de sua morte, foi substituído pelo Professor Paulo Nogueira Neto, o “Titã do Ambientalismo Brasileiro”; em verdade, o primeiro “ambientalista” do Brasil, na acepção moderna do título. Em seu discurso de posse, esse notável cientista proferiu significativo discurso, louvando seu antecessor e sua obra, citando seu nome por, pelo menos, nove vezes (!).

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Exposto no Museu Histórico da FMUSP

É do Professor uma tradução belíssima do poema IF, de Rudyard Kipling, exposta no Museu Histórico da FMUSP – ousaria dizer que mais inspirada do que a mais conhecida, de Guilherme de Almeida, o “Príncipe dos Poetas Brasileiros”:

 

 

               ‘SE’ ,   por Edmundo Vasconcelos

Se puderes manter serena lucidez quando ao teu lado todos a perderam, e te censuram…

Se puderes confiar em ti, quando todos de ti duvidam, e entenderes a sua dúvida…

Se puderes esperar sem te cansares da espera; ou caluniado não mentires também; ou odiado não deres motivo ao ódio,

Sem, no entanto, parecer por demais bom, ou sábio por demais no gesto ou na palavra

Se puderes sonhar, sem te deixares pelo sonho dominar

Se puderes pensar sem ser tão só um pensador

Se puderes defrontar o triunfo e a derrota, e tratar igualmente esses dois impostores

Se puderes ouvir a verdade que disseste transformada em mentira para enganar os tolos

Se puderes, vendo destruída a obra da tua vida, resignar-te a reconstruí-la com ferramentas gastas

Se puderes num só lance arriscar o ganho de uma vida, perder, e de novo começar do teu próprio começo, sem um gesto, sem uma palavra sequer

Se puderes obrigar tuas forças, teus nervos, teu ânimo a servir, depois de quase exaustos já e persistir, quando em ti nada mais existe que a vontade que lhe diz “persiste!”

Se puderes falar com a plebe e manter a hombridade ou falar com os reis – sem perder a simplicidade

Se nem inimigos nem amigos queridos conseguirem ferir-te

Se puderem confiar em ti os homens todos sem deixarem que algum nesse fiar se exceda

Se puderes encher o implacável minuto com sessenta segundos de válida existência tua serás a terra toda, com tudo o que nela existe e o que é mais serás um homem, meu filho.

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Traduziu também, a peça Macbeth (Shakespeare), poemas de Pablo Neruda e o Cemitério Marinho de Paul Valery – só encontramos este último:. 

‘Cemitério Marinho’ (Le Cimetière Marin – Paul Valéry)

Ó min’alma não aspires
A uma existência imortal,
Mas goza plenamente
Tudo o que estiver ao teu alcance.

Píndaro
Píticas III

Este teto tranquilo, onde caminham pombas,
Palpita entre pinheiros e tumbas;
Compõe-lhe de luz o meio dia justo
O mar, o mar, sempre recomeçado!
Que recompensa após meditação
N’um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Puro lavor de finos lampejos consuma
Tanto diamante de imperceptível espuma,
Que imensa paz então parece haver,
Quando no abismo um sol vai repousar!
Obras tão puras de uma causa eterna,
O tempo cintila e o Sonho é saber.

Tesouro!
templo a Minerva,
Massa tranquila,
clara reserva,
Fonte!…
Olho que em ti escondes
Profundo sono
Num véu de luz.
O meu silêncio!
Castelo n’alma,
Mas cúpula de ouro de mil telhas,
Teto!

Templo do Tempo, que um suspiro só resume,
Ascendo a esta pura elevação,
A ela me habituo,
Todo envolto em meu olhar marinho;
E como aos deuses minha suprema oferenda,
A cintilação semeia serena
Sobre a profundidade um desdém soberano.

Como o fruto em sabor se funde,
Com em delícia muda sua ausência,
Em uma boca onde a forma se morre,
De meu futuro o fumo aqui aspiro,
E o céu canta à alma consumida
A mudança dos mundos em murmúrio.

Belo céu, vero céu, vê, me transmudo!
Após tanto orgulho, tanto estranho ócio,
Mas cheio de poder,
Abandono-me a este espaço brilhante;
Sobre as casas dos mortos passa minha sombra,
Que me acostuma ao seu leve mover.

Alma exposta às tochas do solstício,
Detenho-te, admirável justiça da luz
de armas implacáveis!
Devolvo-te pura à tua origem primeira;
Acautela-te!… Iluminar obriga
Uma triste metade encher de sombra.

Só para mim, em-mim, por-mim somente,
Junto d’um coração, nas fontes do poema,
Do incriado á pura criação,
Espero o eco de minha íntima grandeza,
Amarga, sombria e sonora cisterna,
A soar n’alma um vazio sempre futuro!

Sabes, falso cativo das ramagens,
Golfo devorador destes finos gradis,
Segredos deslumbrantes a meus olhos cegados,
Que ânimo me traz a este fim remorado,
Que amor o atrai a esta óssea terra?
Dele um lampejo lembra os meus ausentes.

Fechado,
Sagrado,
pleno de ardentias
Pedaço desta terra oferecido à luz,
Praz-me este lugar dominado de archotes,
Feito de ouro, pedra e árvores sombrias,
Onde mármores tremem sobre tantas sombras;
Junto a minhas tumbas dorme fiel o mar!

Esplêndido molosso, afasta o idólatra!
Enquanto, solitário qual pastor,
Pastoreio carneiros misteriosos,
Branco rebanho de tranquilas tumbas.
Afastai as divinas pombas,
Os sonhos vãos,
Estranhos anjos!

Aqui vindo o futuro é lentidão.
O claro inseto aranha na aridez;
Tudo queimado, levado ao ar, desfeito…
Em não sei que elementar essência…
A vida é vasta, ébria de ausência,
A mente é clara e doce a amargura.

Estão bem nesta terra os mortos escondidos
Que os aquece e seca o seu mistério.
Pleno sol no céu, meio dia imóvel,
De si pensa e consigo mesmo acorda…
Mente completa e diadema perfeito,
Eu sou em ti a secreta mutação.

Só a mim tens para deter teus temores!
Meus remorsos, dúvidas, receios
São a jaça do teu grande diamante…
Mas na noite, de mármores pesada,
Um vago povo, na raiz das árvores,
Para o teu Ser caminha lentamente.

Dissolveram-se numa espessa ausência;
Bebeu a terra rubra a clara espécie,
Passou às flores a fonte do viver!
Dos mortos onde estão as frases familiares,
Os modos pessoais, as almas singulares?
A larva corre onde corria o pranto.

O grito agudo, as jovens afagadas,
Os olhos, dentes, pálpebras molhadas,
O seio encantador que brinca com o fogo,
Sangue que brilha, lábios que se entregam,
Últimos dons e os dedos que refregam,
Tudo se enterra e volta ao mesmo jogo!

E vós, grande alma, esperais um sonho
Que já não tenha as cores da mentira,
Que ouro e paixões a nossos olhos fazem?
Cantareis quando fordes vaporosa?
Tudo se esvai!
Minha presença é porosa,
A santa impaciência morre também!

Magra imortalidade, negra e dourada,
Consoladora horrível e louvada,
Qual seio maternal fazes da morte.
Bela mentira,
Piedoso engodo!
Quem não conhece,
Quem não detesta
Esse olhar vazio e esse riso eterno!

Pais soterrados, cabeças desabitadas,
Que sob o peso, tantas pás de terra,
Sois terra e confundis os nossos passos,
O verdadeiro roedor, verme irrefutável,
Não é para vós que dormis sob a lousa,
Vive da vida e nunca me abandona!

Ódio, ou de mim amor?
O seu dente secreto está de mim tão perto
Que lhe podem convir os nomes todos!
Que importa! Vê, deseja, sonha e palpa!
Apraz-lhe minha carne, e até mesmo no leito,
A este ser vivo, vejo pertencer!

Zenão, cruel Zenão, Zenáo de Eléia!
Atravessou-me a tua flecha alada
Que vibra, voa e não se move!
O som me cria e a flecha me mata!
O sol… sombra de tartaruga para a alma,
Aquiles imóvel a grandes passos!

Não, não… de pé nas eras sucessivas!
Deixa, meu corpo, a atitude pensativa!
Aspira meu peito, o levantar do vento!
Brisa fresca exalada pelo mar,
Devolve-me min’alma… salso poderoso!
Mergulhar e redivivo ressurgir!

Sim grande mar, cheio de delírios,
Pele de pantera, clâmide perfurada
De milhões de imagem do mesmo sol formada,
Hidra absoluta, ébria da tua carne azul,
Que remordes a cauda flamejante
Num rumor ao silêncio semelhante.

Levanta-se o vento… é preciso viver!
O ar imenso reabre e refecha meu livro,
A vaga em pó ousa jorrar das rochas!
Perturbadoras páginas, revoai soltas!
Destruí, vagas?! destruí águas festivas
Esse teto tranquilo onde bebericavam velas!

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Além disso, é o autor de um ensaio sobre “A arte da cerâmica na China” (infelizmente não o temos…) e atualizou o  Juramento de Hipócrates, que todos nós, médicos, prestamos quando de nossas formaturas:

“Prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência.

Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, 0 que terei como preceito de honra.

Nunca me servirei da profissão para corromper os costumes ou favorecer o crime.

Se eu cumprir este juramento com fidelidade, goze eu, para sempre, a minha vida e a minha arte, com boa reputação entre os homens.

Se o infringir ou dele afastar-me, suceda-me o contrário”

 

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A cirurgia tecnicamente perfeita, Vasconcelos não cansava de repetir, exigia gestos precisos, tempo impecável, ritmo e velocidade! A ausência de tecnologia da época, era compensada pelo absoluto rigor da técnica cirúrgica… além de certa ‘veia poética”. Era emblemática sua falta de paciência com quem não lhe parecesse, por algum momento, perfeito! Ou que não coubesse no perfil do cirurgião ideal, descrito por ele na oração de paraninfo da turma de 1962, da FMUSP. Na verdade, mais parece uma descrição dele mesmo:

“São as vossas mãos, mãos do destino, mãos de médicos, mãos que vêem, mãos que se estendem, mãos vibrantes, mãos brancas, mãos sangrantes. Mãos que vêem onde os olhos não vêem, que o coração adivinha e a inteligência aguça. Mãos que sentem a suave maciez da saúde e a aspereza longínqua da doença. Mãos que crêem, mãos que rezam, mãos juntas que juntas rezam nas longas lutas o fim do rosário das longas esperanças. Podeis parar, serenas mãos, quando o trabalho estiver feito e, sobre o peito, descansarem quietas.

E a seara do bem, do belo e da verdade, florescer e frutificar nos que hão de vir. Agora dai-me as vossas mãos, Médicos que hoje sois, a mim, que vos recebo, irmãos: Sede bem-vindos, e que a aventura seja na jornada a vossa companheira; que o sonho da mocidade se realize na idade plena, quando estiverdes tranquilos, felizes na maturidade. Crer já é levar em si o germe da vitória – e porque eu creio, soldado da mesma legião, crente da mesma crença, semeador da mesma seara, farei de vossa vitória a minha vitória, de vossa verdade a minha verdade, de vossa vida a minha vida, e do vosso bem a minha bênção. Amém”.

A platéia, impressionada com sua oração sobre o poder de cura nas mãos dos médicos, e repleta de poesia, não poderia ter outra reação: o aplaudiu de pé!

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5 comments

    • Eduardo Berger 19 junho, 2022 at 11:03 Responder

      É isso, meu amigo! Aprendi muito com o “Vasco”… inclusive aquilo que nunca se deve fazer (rs).
      Agora, é inegável o brilhantismo e a criatividade de suas palavras, especialmente no “Juramento Hipocrático” e na “Oração às Mãos” (do médico).

  1. Cilene 20 junho, 2022 at 11:27 Responder

    Mestre admirável maravilhoso!
    Sua oração de paraninfo é uma das coisas mais bonitas que li na me medicina. E uma oração em poesia.

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