Estou em 1968, no quinto ano deste curso que julgamos nos transformar, de calouros, em aprendizes de herói e santo. Como acadêmico que se preza, dou meus plantões “por fora”. Neste sábado, no Sanatório Charcot. Sou um gênio. Todos, pacientes e enfermeiros, me tratam por “doutor”. Sim, como sorvo o gosto desse poder!
Dispostos pelo terreno, ficam os prédios – pavilhões de quartos, cozinha e refeitório, administração e consultórios. A unidade separada, distante, a antiga casa, outrora sede do que havia sido a chácara, abriga o quarto de Glorinha, a administradora, residente no hospital, o quarto do médico plantonista e mais três quartos de pacientes. Ficamos todos num distanciamento privilegiado do restante da população do sanatório – pacientes e funcionários. Estamos todos na sala, assistindo TV. O dia é de visitas. Um dos pacientes recebe a esposa, que trouxe uma caixa de bombons, servidos educadamente a todos.
Deliciosos!
No quarto ocorre a briga em voz altíssima, em alemão.
Sem entender o que falam, me assusto. Bato à porta, o casal volta à sala.
– “Doutor, este homem me tira do sério! Minha raiva é tanta, que tenho vontade de envenenar a comida dele!”
Os bombons sobem e param no esôfago. Os outros dois pacientes, esquizofrênicos com delírio persecutório, correm para fora e vomitam. Não faço igual, creio, por não querer parecer igual. Aguento o pavor.
Coisa de gênio principiante. Algum dia vou rir disso…
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