SOBRE “A FORMAÇÃO DO CIRURGIÃO” DE EDMUNDO VASCONCELOS, POR Eduardo Berger
Com certeza, para todos nós, médicos formados nos anos ’60, a marca Carlo Erba foi bem significativa: além de ter sido o nosso primeiro contato com os produtos farmacêuticos, foram bastante colaborativos nos tempos acadêmicos.
Esse laboratório patrocinou a publicação de uma brochura, contendo a conferência que o Professor Edmundo Vasconcelos proferiu na Academia Nacional de Medicina, por ocasião da entrega do Premio Alvarenga ao Doutor Silvano Mário Atilio Raia, coincidentemente no ano de nossa admissão na Casa de Arnaldo (1964). Obtivemos uma cópia em PDF e fizemos a sua transcrição, abaixo publicada.
Confesso, como razoável conhecedor das características do “velho mestre”, que me impactou bastante a leitura da matéria, ora com surpresa, ora com admiração:
1º) Vasconcelos, representando o Silvano (!?!?), foi receber, em nome deste, o Premio Alvarenga, à época oferecido “ao melhor trabalho sobre qualquer assunto médico ou científico”. Raia era seu assistente, um jovem promissor, então com apenas 7 anos de formatura (!). Ficou claro que Vasconcelos usou o evento para… “depois eu conto” – como diria o célebre “filósofo contemporâneo” Ibrahim Sued! (rs)
2º) Sua peroração foi bastante extensa, li-a e reli-a por inteiro, entretanto, com calma e em “suaves prestações”… e notei que o nome do homenageado foi por ele citado apenas duas vezes, e não com a ênfase que merecia.
3º) A “formação de um cirurgião”, nos moldes descritos por ele, em 10 anos (!), fosse implantada à época, faria com que praticamente todos os 21 cirurgiões de nossa turma se dedicassem à clinica, pediatria, homeopatia, acupuntura, ou alguma atividade comercial (um posto de gasolina, um bazar) – IMPRATICÁVEL!
4º) O preciosismo com que o Mestre descreve a formação de um “artista”, de uma “jóia rara”, de uma “obra prima”, que ele chama de “CIRURGIÃO”, creio ser utópica até em países de primeiro mundo, que dirá cá em Terras de Santa Cruz!
5º) Vasconcelos encontra analogias com sua forma de ser, tanto no Inferno de Dante, quanto nos poemas de Cassiano Ricardo… e se permite incluí-las no prólogo da publicação, dando asas ao leitor para que se deleite em pensamentos metafóricos!
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CONSIDEREM. POR FAVOR ESTA POSTAGEM COMO INACABADA…
Pretendo incluir, ao final algumas “notas” numeradas
POR FAVOR, COMENTEM, ME CORRIJAM, ACRESCENTEM NOTAS E OBSERVAÇÕES.
Obrigado e curtam – “lenta e fracionadamente”!
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“guarda com’entre e di cui tu ti fide: num t’inganni l’ampiezza de l’entrare!”
Dante – Inferno – Canto V
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“Mas lua nova e crua do meu estar aqui, entre o cais de pedra e o azul solto que dança neste rude diálogo da espera com a esperança.”
Cassiano Ricardo – “João Torto e a Fábula”
(*) do poema “A Lua Imóvel”, página 30 (nota do editor)
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TRANSCRIÇÃO DA CONFERÊNCIA PROFERIDA PELO PROFESSOR
“A FORMAÇÃO DO CIRURGIÃO”
“Tolerai hoje, Senhor Presidente, venha eu falar em festa que não é minha, para receber um prêmio que não é meu. Perdoai-me que eu compare, na germinação das mentalidades fecundadas pela permeação das ideias e vivências, o fenômeno da unidade plasmática das transmissões genéticas.
Vai para mais de um quarto de século, a tanto se estende o meu labor universitário, venho plantando tenras plantas que hoje são arvores robustas.
Quantas vezes, diante de um grupo de moços, ansiosos e cheios de esperança, mas com os rostos ainda não moldados pela vida, os corpos ainda sem as marcas das longas vigílias e as vontades ainda titubeantes e inseguras, eu disse ao Fado que governa os deuses, como Banque às feiticeiras do destino, na tragédia de Shakespeare:
If you can look into the seeds of time
and say wich grain will grow and wich will not,
speak then to me…
Plantei vezes, certo que semeei em vão.
E olhando essa chã tão duramente amanhada, na certeza de criar uma escola e fazer uma continuidade, eu vejo os seis professores de cirurgia das seis escolas médicas de São Paulo, antigos assistentes meus (1), formados a meu lado, assemelhados todos, a brilhar hoje como Mestres incontestáveis, em todos os recantos do Brasil. O meu chefe de clínica, após vinte anos de servir à cirurgia e de percorrer toda a escala dos postos médicos. Chega a Superintendente do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina (2). O chefe do serviço de urgência de todo o hospital escolar, cirurgião e anatomista de reconhecidos méritos (3), é ainda, já lá vão tantos anos, assistente de minha cátedra.
Quase todos os chefes dos grandes serviços médicos da Santa Casa, do Hospital dos Servidores do Estado, do Hospital Municipal, dos hospitais autárquicos, quase todos, do Hospital Sírio Libanês são assistentes meus, abeberados da mesma fonte, seguindo as mesmas diretrizes, hoje focos incandescentes, por todos como tal vistos e reconhecidos.
Na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, detém a minha cátedra o maior número de docentes-livres dentre todas as cadeiras que lhe compõem o currículo; hoje também luzeiros dentro da profissão e da Universidade.
Desde que foi instituído o prêmio de cirurgia do hospital da Prefeitura Municipal de S. Paulo, todos os anos, regularmente, levantaram-no os assistentes do meu Serviço.
Por vezes já muitas, médicos da minha clínica foram os vencedores dos prêmios desta vetusta Agremiação, e aqui lhe vieram bater às portas para se honrarem de se ver julgados pelo cenáculo exponencial da medicina brasileira.
Neste ano a Academia Nacional de Medicina galardoou com suas láureas mais dois assistentes de minha cátedra, discípulos diretos meus; e na solenidade de hoje, entrega ao Dr. Silvano Raia o Premio Alvarenga para o melhor trabalho sobre qualquer assunto médico ou científico.
Estudando na Inglaterra, na clínica de Sheila Sherlock, com uma bolsa de estudos, pede-me o premiado de hoje, compareça para aqui receber o prêmio que agora lhe cabe. Recolho assim, senhor Presidente, o reconhecimento da excelência do fruto dessa árvore que eu vi semente. Fio-me que é o espoucar de roble que será robusto e firme, fincando na terra seus cravos de aço e levantando no ar os seus braços possantes.
Tomo hoje do vosso estímulo para entregá-lo a essas raízes, que o hão de receber como o fertilizante, que lhes há de avivar as potencialidades da seiva que o tempo fará patentes.
Vai o Dr. Silvano Raia a meio de uma dura e longa estrada, conquistando os postos profissionais e científicos com a honestidade do trabalho e a consciência do saber aprofundado, com que há de honrar o nome de seu Pai médico, da Escola de onde vem e para glória de sua carreira que se anuncia radiosa; e a mim, que me dá a emoção de aqui hoje o representar.
Que me seja concedida a vênia, para que eu diga dos longos roteiros e dos exaustivos trabalhos, a que se submeteram aqueles que me honraram por terem aceito as minhas diretrizes, dentre os quais os premiados desta Academia têm sido exemplos luminosos e radiantes.
Para os que encetam a jornada da cirurgia, melhor fora que claramente antevissem a longura do propósito e a extensão da caminhada.
Tudo me diz que antes a franqueza do que traça o caminho e aponta um programa lúcido e claro, do que a ilusão das meias palavras e o negacear das diretrizes. Mais vale um nítido propósito sabido e aceito, que a ilusão do desconhecido e do ignorado.
Estou começando a cansar-me de ver desilusões. Estou começando a cansar-me de ver moços pararem a meio do caminho por não saberem a vastidão da trajetória ou da aspereza dela.
Valha, primeiro do mais nada, o conceito de que a cirurgia e o cirurgião só são verdadeiramente grandes e magníficos, quando elevados à altura de uma arte e o cirurgião à do artista.
Só assim são eles capazes de grandes realizações, dos formidáveis progressos da terapêutica mecânica que fizeram o prodígio dos últimos cinquenta anos.
Mantida à altura dum artesanato, acessível a qualquer artesão, não é mais do que lamentável equívoco da produção em massa.
Confunde-se o cirurgião médio com o cirurgião medíocre, fonte de desgaste para si e, mais ainda, para a humanidade. Arte acessível a poucos, por isso não pode nem deve ser plebeizada. Como na pintura, conta pelos seus artistas e não pela multidão dos que apenas nela gastam telas e tintas, no desperdício das próprias vidas.
Arte suprema da medicina curativa, não pode ser entregue às mãos de todos, e muito menos submetida a uma aprendizagem açorada no tropel das legiões.
Confunde-se a igualdade de todos e a oportunidade aberta a todos, com a mesma capacidade de todos.
As capacidades são fundamentalmente diversas, embora as oportunidades devam ser iguais.
A cirurgia, assim como a pintura ou a música, tem seus eleitos. Feliz é aquele que na oportunidade a todos aberta, sabe encontrar aquela na qual possa atingir a superação e a excelência.
As artes cirúrgicas não comportam a mediocridade, comportam sim, as atividades maiores ou menores, campos mais restritos ou mais intensos, horizontes mais próximos ou mais amplos. Mas em cada um desses setores o artista deve ser superior e perfeito, ou causará muito mais males que benefícios, mais desastres do que curas.
Aqui, como na joalheria, não cabe a produção do grande número. O cirurgião deve ser como joia, longamente feito, um a um, manualmente, individualmente. E só poderá ser apresentado quando se mostrar acabado e perfeito.
Para tanto, em primeiro lugar, está a vocação.
Aqui a vocação alia-se ao temperamento, pois a psicologia mostrou sobejamente que o temperamento do cirurgião diversifica-se muito daquele do clínico, do psiquiatra ou do neurologista.
Algumas características psicológicas, não direi qualidades nem defeitos, lhes são imprescindíveis.
É evidente que a personalidade dos contemplativos, dos indecisos, dos excessivamente tímidos, acomoda-se mal, ou mesmo de todo se impropria, à prática cirúrgica.
O caráter cirúrgico tem muito da agressividade, do comando, da ação, da decisão pronta e rápida, da responsabilidade, sem titubeios, no qual domina a característica do movimento e da execução. É muito mais um psico-motor que um introspectivo.
Confundem-se, os que o não conhecem, seja apenas um hiper-agressivo, dando através do ato cirúrgico vazão ao seu temperamento e às suas tendências. Dificilmente lhe reconhecem as qualidades intelectuais e, sobretudo as das mais puras emoções da alma. (4)
Atrás de um pragmático disciplinado, de aparência fria e distante, está frequentemente uma sensível e um emotivo, que o manuseio quotidiano do sofrimento e da dor não endurece e insensibiliza, mas, ao contrário, mais o apura e mais o torna sensível e humano.
Nenhuma piedade é tão forte como a piedade que a cirurgia ensina aos homens.
Apenas aprenderam na rígida disciplina, no pulsear diário com a morte, o controle das sensações e das atitudes. O devaneio e a divagação, as hipóteses longínquas ou sem uma solida objetividade não encontram neles campos favoráveis de pouso. Acostumados à realidade concreta, os diagnósticos hipotéticos ou as fantasias, por mais engenhosas e brilhantes que não tenham a clara demonstração imediata dos seus fundamentos, não os seduzem.
Não há dúvida que a cirurgia é vasta e multiforme, vai desde a hipótese até a análise dos resultados, desde o diagnóstico até a publicação árida ou brilhante, mas só o ato cirúrgico dá a altura e o valor de um cirurgião, é só na operação que se mostra o operador, é só na execução técnica que se mostra a estatura do técnico. (5)
Tudo o mais são roupagens, mais ou menos vistosas.
O cirurgião que não for um ás de sua técnica, será um grande diagnosticador, um grande patologista, um brilhante expositor, jamais um grande cirurgião. Por isso mesmo, dentro da vocação, deve estar a paixão pelo ato operatório, a destreza manual, ou melhor, bi-manual, a delicadeza dos movimentos ao lado da agilidade e da presteza. Ninguém pretende seja a rapidez da intervenção uma prova de velocidade a ser daí a pouco batida.
A rapidez operatória, junto à perfeição dos resultados, é o índice da excelência.
A velocidade do avião não é uma finalidade em si, mas um índice da perfeição da máquina.
A rapidez operatória é o marco da mais precisa coordenação cerebral, junto a conhecimentos longamente adquiridos da anatomia normal e patológica, aliados aos recursos da tática e do longo adestramento manual, a serviço de uma vasta experiência. É a visão principal e a rejeição do acessório e parasita (6), da disciplina ordenada e rigorosa da inteligência, na mais elevada racionalização do trabalho, que, aqui, é a conjugação do cérebro e das mãos, pois na cirurgia não são elas mais que prolongamentos do cérebro, por ele rigorosamente comandadas.
A vocação é a soma algébrica de todos esses atributos, mais a vontade segura e firme de superar o artesão e realizar o artista. E só leva a esses píncaros, a vontade que é forte e a vocação que é firme. Quem não puder respirar esses ares, que não pretenda chegar a essas alturas.
Tão importante quanto a vocação e a vontade é o longo tempo do preparo.
Sendo a mais difícil de todas as especializações dentro da medicina, exige conhecimento amplo e variado de inúmeras ciências e disciplinas, que só compridamente o tempo consegue senhorear.
Antes dos dez anos após a formatura ninguém é cirurgião, apenas uma vocação em marcha.
É uma vontade que, se for perseverante e iluminada, chegará aos cimos da cirurgia. Antes disso, nem os geniais lá chegaram (7): porque não há inteligência que consiga abarcar tão vasto campo, que só o tempo permite percorrer e dominar, aliada à experiência pessoal, sem o que, toda a ciência nada é mais que a cultura da vivencia transmitida de outros.
A vontade deverá estar preparada para enfrentar estes dez anos. Como disse Rainer Maria Rilke:
“toda época da aprendizagem é um período de clausura”.
São condições necessárias, como as suporta o artista, pintor ou músico, no período da conquista de sua arte.
As condições econômicas devem pré-existir (8) ou serem supridas pelo longo sacrifício das privações materiais, longas e penosas.
A conquista material e a conquista econômica não se emparelham nesta fase da construção basilar. A base econômica tem de existir ou dela se abdicar. São dois planos que não suportam a simultaneidade: estudo e trabalho técnico com aquisição material (9).
Não há paranás, não há trilhas, não há veredas.
O futuro cirurgião ou possui os recursos que o libertem do trabalho para lhe permitir o estudo, exaustivo e diuturno, ou deverá resignar-se às restrições que lhe permitam vida simples e dedicação profunda.
Não há alternativa, não há curto-circuito.
A estrada da perfeição não tem atalhos.
Necessário é, ainda que tenha vontade forte para se antepor à opinião dos demais, para quem os valores e seus conceitos são diferentes daqueles dos que querem chegar. Os critérios de valor do homem comum não são os do intelectual ou do universitário, e nem todos, dentre estes, são os do que querem atingir a excelência.
Tal ou qual sucesso econômico, tal ou qual sucesso profissional, tal ou qual sucesso social ou político, pode não ser o mesmo, ou ir chocar-se com os critérios de valor, daqueles que, neste período de luta pela superação, querem lograr o que outros não vêem.
Corolário indispensável à serenidade interior é à calma realização dos objetivos, é o desprezo total à opinião dos que julgam por outros coeficientes de valor: a tranquilidade do espírito é a condição básica do trabalho produtivo.
Donde o fortalecimento da vontade contra as opiniões e as críticas que vierem de fora.
É sempre a mesma luta na fase obscura que antecede a perfeição e a verdadeira arte.
No pacientar está uma das condições de que o mais depende. Como já disse Elliot,
“só com o tempo se vence o tempo”;
…não pensará por outra forma quem tem a vontade da perfeição e a ânsia da vitória. Caminho longo, lento, tedioso, exaustivo.
Este longo caminho há que ser dividido em dois quinquênios. Uma linha paralela, porém, os acompanha a ambos: o conhecimento dos homens e da conduta humana. Para isso impõe-se planificar dois estudos básicos: um curso exato e minucioso de “organização racional do trabalho” e um outro de “psicologia individual”, conhecimentos que deveriam estar incluídos em todos os programas de todas as escolas superiores e técnicas.
Pelo primeiro aprende-se a utilização racional do esforço, a obtenção de melhores resultados com menores fadigas, a economia de material e dos recursos, o planejamento seguro, a poupança de forças,
A outra aprendizagem é a das relações humanas, sem o quê todo esforço esbarra e se anula na incompreensão dos homens e do ambiente. Aprender-se-á na psicologia individual e na psicologia médica a entender o homem são e o homem doente; aprender-se-á a imensa misericórdia pelo que sofre e a infinita paciência com o que se desespera. Aprender-se-á não derrubar com uma palavra um mundo de esperanças, nem a amargurar a desgraça com a rudeza.
Paralelamente, nesses dez anos, os homens irão sendo compreendidos pela frequentação das grandes obras da literatura e pela aprendizagem indispensável, pelo menos das três grandes línguas pensantes: francês, inglês e alemão; dado que o italiano e o espanhol nos são mais ou menos familiares.
Dois grandes períodos de cinco anos serão de início programados: no primeiro será estudada a anatomia normal, roteiro indispensável e imprescindível que se prolongará por dois anos. Por esse tempo dever-se-á manusear no cadáver todas as estruturas do organismo. Não um estudo livresco, que menos vale, mas uma persistente dissecção, com acesso por vários pontos, até ficar subconsciente a “anatomia espacial”, isto é, os volumes, as distâncias respectivas, as relações, os acolamentos, as fixações entre os vários órgãos.
Deve acompanhar-se da leitura dos grandes textos e das revistas especializadas, e se possível ao fim desses dois anos, da publicação de um artigo de natureza puramente morfológica. Por ser a ciência de âmbito médico mais simples e mais enquadrada em limites estreitos e fixos, com esse trabalho o estreante começará por aprender as bases e a anotação da bibliografia, a maneira de observar e resumir, o modo de redigir. E como pode ser estudada isoladamente e sem inter-correlações, é a mais apropriada ao início, para os trabalhos escritos.
Os três anos seguintes serão ocupados com o saber a patologia, cadeira fundamental da medicina toda, que é a base e o próprio conhecimento da história natural das moléstias. A anatomia patológica é o fundamento mesmo para a compreensão da doença, o seu início, o evolver, o modo pelo qual se exteriorizam em sintomas e por fim os mecanismos que conduzem à morte.
O estudo pela autópsia só terá valor quando precedido do compulsar exato, minucioso de todos os dados clínicos, de todos os sintomas e da apreciação de todas as análises. Só após esses dados lidos e relidos é que deve ela ser iniciada. Sem isso, é apenas evisceração sem sentido e menor proveito.
Que se não faça o curso de mais de uma autópsia por semana; mas este deve ser intenso, profundo, acompanhado de estudo dos tratados e das lâminas microscópicas, com um orientador competente e paciente. Isto dará uma centena de autópsias ao fim de três anos, o que é amplamente suficiente como o conhecimento básico que se deseja para o cirurgião.
Esqueça-se ninguém de que a anatomia patológica é a própria medicina, é o desfilar da moléstia debaixo dos olhos do observador.
Será do mais alto interesse seja publicado um trabalho de anatomia patológica especializado ao fim desse tempo para que o estudioso se familiarize com esta ciência morfológica, mas que se entrelaça e se entremeia em outros ramos das ciências médicas; trabalho esse possivelmente apresentado como tese de doutoramento, ou trabalho a premo. É mais um passo no caminho da aprendizagem.
O laureado de hoje trouxe à apreciação desta Douta Academia que, no seu alto critério, confere-lhe o Premio Alvarenga de 1964, um estudo levando por título: “Anatomia Patológica aplicada às afecções do Pâncreas”.
Essas duas disciplinas ocuparão as tardes desses cinco anos, devendo as manhãs ser passadas em uma clínica cirúrgica do Hospital. Aí, o estudioso nos dois primeiros anos deverá funcionar como instrumentador. Nesse período deve conhecer o nome e o manejo de todos os instrumentos cirúrgicos; o manobrar das mesas operatórias, bisturi elétrico, aspiradores, instrumentos especializados e fazer um adestramento rigoroso com o instrumental e o material sem a menor hesitação ou leve equívoco.
Nos outros três anos funcionará exclusivamente ora como instrumentador, ora como auxiliar de um excelente cirurgião. Formal proibição de operar o que quer que seja.
Durante esses cinco anos, nos dias em que não estiver na sala operatória (por isso terá três vezes por semana), deverá dedicar-se ao estudo do diagnóstico clínico aprofundado, da utilização dos exames de laboratório, e procurar relacionar os sintomas e queixas do doente com os achados operatórios e morfo-patológicos. Disto ocupar-se-á, diariamente, nas manhãs, das oito às doze horas. Fundamental é o conhecimento da anatomia patológica do vivo, acareada com os sinais e sintomas clínicos. É indispensável que conheça a fisionomia das lesões do homem doente nos seus aspectos macro e microscópicos. É dessa correlação que surgem o entendimento da moléstia e de seu decurso.
Foi o que Foot demonstrou no seu “Living Pathology”. As lesões cadavéricas, embora importantes, são lesões finais, incompatíveis com a vida, pois que provocaram a morte.
Os sábados e domingos devem ser impreterivelmente dedicados ao esporte, à vida ao ar livre e às relações humanas; nenhum trabalho de natureza alguma.
Ao fim desses primeiros cinco anos, o jovem estudioso deveria conhecer durante um mês os grandes centros cirúrgicos de um ou mais estados do Brasil, e trocar opiniões com seus colegas, ver outros Mestres.
Segundo plano quinquenal: está o futuro cirurgião de posse de sólidos conhecimentos de anatomia normal, anatomia patológica, semiologia clínica e técnica cirúrgica.
Neste segundo quinquênio todas as manhãs serão dedicadas ao estudo dos doentes. Três vezes por semana, o estudo aprofundado de um só doente por vez, pormenorizando a sintomatologia clínica, a exploração semiológica, a interpretação segura e minuciosa dos exames de laboratório, e o emprego de todos os métodos para a consecução do diagnóstico exato.
Três vezes por semana, aprendizado da tática cirúrgica, operando ou ajudando sob a orientação de um cirurgião competente, voltando frequente à instrumentação. Terminada a qual procurará fazer um relato minucioso do ato operatório, bem como da peça anatomopatológica. Encarregar-se-á pessoalmente do pós-operatório, bem como de ver, no decurso do dia ulterior, todos os doentes que estudou e em cuja intervenção tomou parte, em qualquer das funções.
Durante os dois primeiros anos deste segundo quinquênio, à tarde, deverá adestrar-se em: retossigmoidoscopia, peritonioscopia, esofagogastroscopia e anestesia.
Nos dois anos seguintes, à tarde, deverá frequentar as clinicas cirúrgicas, ginecológica, torácica, urológica e diagnóstico radiológico, com estagio de quatro meses em cada uma.
No último ano do segundo período quinquenal, deverá trabalhar no Serviço de Pronto Socorro e cuidar no seu concurso para a docência livre como coroamento deste longo preparo de dez anos, nos quais deverá vir acumulando dados e documentação para essa prova final de capacidade.
Durante estes cinco anos, deverá publicar regularmente observações de casos clínicos comentados quanto ao diagnóstico e à conduta; bem como publicar resultados estatísticos de orientação operatória, ou trabalho de investigação.
Foi como conclusão deste período técnico e clínico que aqui foram apresentadas as monografias “Esofagoplastias retroesternais” e “Estudo da circulação sanguínea intestinal pela fluoresceína” do Dr. William Saad Hossne, que levantaram nesta Academia os lauréis ao melhor trabalho de cirurgia, respectivamente em 1963 e 1964, com o Premio Fernando Vaz.
Na cirurgia não cabem médios e medíocres, pois, como na aviação, o erro ou a ignorância paga-se com a morte.(n)
Não é concebível que algumas estatísticas mostram que oitenta por cento das hérnias precisam de ser operadas duas e três vezes, que a cirurgia da tireoide apresente tantas secções dos recorrentes e a ginecologia tantas secções de ureteres, não é possível que a cirurgia biliar apresente tantas complicações e desastres. Que a mortalidade, nelas, se apresente tão alta.
Esses acidentes não são, na sua grande maioria, acidentes; são puro e simples despreparo técnico. A mortalidade que ultrapassar a casa dos 3% precisa ser re-investigada para que não passe sob a bandeira dos acidentes e contrabando das incompetências.
É preciso não esquecer que entre a saúde e a morte, há um capítulo trágico que é o da invalidez. Todas as operações que deixam resquícios, como: tetanias para-tireoprivas, colédocos seccionados, fístulas, icterícias incuráveis, angiocolites, mal funcionamento dos cólons, bexigas mal funcionantes, rins inutilizados ou perdidos, eventrações pós-operatórias, pseudo-artroses são outras tantas invalidezes que não matam, mas que infelicitam uma vida, anulam uma carreira, ou desgraçam um lar.
Outras vezes passam sob disfarces e eufemismos: síndrome de “dumping”, síndrome pós-colecistectomia, que mais não são que erros de técnica ou de diagnóstico.
Estes fatos de alta gravidade não comportam leveza de juízo, tolerância de consciência ou descuido de responsabilidade.
A vida do homem é por demais preciosa para ser levianamente jogada, só devendo ser permitido tocá-la, aqueles que estejam superiormente preparados e que levem a segurança da competência total; para os quais o acidente é uma impossibilidade material e humana, que não deve ir além do tolerável 1%. Como o desastre aéreo ou naval, não deve ser mais do que desastre, não tolerância diante de uma técnica ou de uma ciência precárias dos medianamente preparados.
Neste afiar-se da inteligência e da cultura, a não ser para contados casos excepcionais, necessária é a orientação firme de um Mestre capaz e dedicado, em quem se confie, a quem não raro se tolere, que ensine com capacidade e com liberalidade, mas a quem se dê a colaboração e o tácito aceite de que as diretrizes são certas e o resultado seguro.
Neste segundo quinquênio, durante as férias, serão feitas uma ou duas viagens aos Estados Unidos ou à Europa,
Fora casos muito especiais e muito contados, deverá no fim desse período afastar-se da clínica universitária e constituir o seu próprio núcleo de trabalho científico e irradiação profissional.
É preciso não esquecer que o trabalho cirúrgico é uma atuação social e prática e não uma ciência especulativa, como tal deve atuar e servir aos homens de seu País e a toda a Humanidade. Deve ser útil ao homem doente e à própria profissão, e firmar-se como um centro atuante no ambiente em que se desenvolve.
Só assim se constituirá uma plêiade de homens do mais alto valor técnico e humano, úteis à sociedade que os formou, e capazes no mister que lhes foi confiado.
Não se esqueça ninguém que no caminho da preparação há cinco imperativos necessários, imprescindíveis e insubstituíveis: Vocação, Temperamento Cirúrgico, Vontade, Tempo de Preparo, Orientação Segura e Firme.
Mas esse é o caminho de todas as excelências. Um músico só se torna concertista ao cabo de dez anos, e não é senão o início de sua carreira artística. A demorada preparação dos pintores e dos literatos não é senão a longa porfia da superação que muitos encetam e poucos terminam. Oxalá na cirurgia, pela clara percepção antecipada do roteiro e da aceitação das condições indispensáveis, aliada ao estudo psicológico da personalidade, todos aqueles que joguem as suas verdes vidas na senda da grande cirurgia possam chegar à desejada meta.
Irradiando-se do núcleo que os formou irão constituir outros tantos centros de utilidade e de ensino; criarão novos cirurgiões que hão de brilhar com claridade própria num imenso chão de luzes
E ressoará na amplidão o canto de Walt Whitman:
“Sou o mestre de atletas, e aquele dos meus que demonstrar valor mais alto do que o meu, é a prova do meu valor; e honra a minha técnica aquele que, com a minha técnica, aprenda a vencer o Mestre”.
FIM
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ANOTAÇÕES NO TEXTO
(1) ALVARO DINO DE ALMEIDA, NA SANTA CASA; WILLIAM SAAD HOSNE, EM BOTUCATU; RUI FERREIRA SANTOS, EM RIBEIRÃO PRETO; quen são os outros 3??
2) OSCAR CESAR LEITE
(3) WALDOMIRO DE PAULA
(4) (5) (6) pintando seu auto retrato…
(7) aqui se contradiz… sabidamente se considera um gênio e sua carreira foi meteórica: graduado em 1928, professor em 1931!
(8) e (9) desestimulante! Cirurgião, só os ricos…
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23 de maio de 2023Professor Edmundo Vasconcelos e a Cadeira 10 da Academia Paulista de Letras
18 de junho de 2022
Difícil saber quem foi a figura maior homenageada, o professor ou o discípulo. Uma bela redação, sem dúvida, e um gigantesco ego levantado por si próprio. Exageros à parte, sua contribuição foi grande, mas ser reconhecido é mais importante que reconhecer-se; mas, uma bela peça literária, sem dúvida.
Perfeito meu Xará querido! Vasconcelos era um egocêntrico, narcisista convicto, não fazia segredo disto: presenteou-se com o bisturi de ouro, correto? Imitou Napoleão Bonaparte, que deixou o Papa Pio VII sentadinho, como um mero convidado (!) e auto coroou-se Imperador da França…
Certamente, ele não foi receber o prêmio, a que Silvano Raia fez jus, simplesmente para louvar seu jovem discípulo. É quase certo, imagino, que ele possa até tê-lo proibido de estar presente. Sabe como são os “grandes senhores”, né? “Deixe que eu cuido disto, o farei muito melhor que você”!!! E aí, inspirado na sua criação, “um novo e brilhante artista”, elaborou o texto e lá se foi aos holofotes!
Ah, ia me esquecendo: contrariando sua tese, Vasconcelos recebia o prêmio em nome de um brilhante cirurgião,…. médico formado há 7 anos!
A última vez que vi o Prof. Vasconcelos foi nos idos dos anos 70/80, distribuindo exemplares de “A Formação do Cirurgião”, de sua autoria, aos participantes de um Congresso Brasileiro de Cirurgia, no Anhembi, em São Paulo. Na ocasião reconheci a figura emblemática do Mestre, recebi o documento que não conhecia, mas confesso que causou-me dó! Pus-me então a meditar: Seria este o fim melancólico de um cirurgião personalista? Seria uma descrença nos “artistas cirúrgicos” contemporâneos? Ou seria a derradeira oportunidade de orientar futuros cirurgiões à sua semelhança e imagem?
Não consegui chegar a uma conclusão na ocasião, mas o fato é que ao longo da minha carreira acadêmica e profissional, li e reli várias vezes a cartilha e cada vez aprendia algo mais.
Creio que os Professores Vasconcelos, Alípio Correa Neto, Eurico Bastos e Benedito Montenegro tiveram enorme importância na formação técnica e ética dos cirurgiões da 52a Turma.
Estimado amigo, meu Parceirinho de tantas jornadas, fosse tem razão: os cirurgiões citados foram “homens à frente de seus tempos”!
Quanto ao Vasconcelos, pretender a formação do cirurgião em 10 anos (!), acabou sendo uma “profecia” – hoje é praticamente assim.
Sou muito grato por tudo que aprendi com ele, inclusive as coisas que o cirurgião NÃO DEVE FAZER!
Acho que a Sala do Choque era emblemática, numa época anterior ao desenvolvimento das UTIs.
Lá, vários colegas já nos relataram passagens de encontro com mestres inesquecíveis, como o Prof. Ulhoa Cintra.
Também eu, de plantão lá, tive a honra, o privilégio, de conhecer de perto o Prof. Alipio Corrêa Neto, em visita de cortesia a um paciente, seu amigo, lá internado. Foi o primeiro, e acho que único, contato mais próximo que tive com o Professor. Fiquei muito impressionado com sua educação, simpatia, sua postura de mestre. Tão impressionado que fui ler sobre sua história de vida, etapas de sua formação como cirurgião, sua participação como médico cirurgião na II Guerra.Que figura enorme da história de nossa amada Escola!