segunda-feira, maio 20

Vetustas memórias de Capri e adjacências, Joel Faintuch

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Cenário: Saguão do hotel da excursão á Europa, Napoli, Julho de 1968

Horário: Logo após o café da manhã

Personagens: Joel Faintuch e José Roberto Lamardo

Naquele dia atrasei-me para o desjejum. Quando desci para a recepção, vácuo total. Um buraco negro não teria sugado o ambiente com mais eficiência.  Os colegas haviam partido para o passeio de carro pelas redondezas, sem me esperar. Enquanto pensava com meus botões sobre o que fazer, eis que surge o Lamardo, vítima das mesmas injunções. Esquecidos e abandonados, saímos para bater pernas, pelas ruas da cidade.

Alguns quilômetros adiante, a glicemia começou a baixar. Com poucas liras no bolso, não tivemos dúvida. Entramos num mercadinho, e adquirimos os produtos mais baratos à venda: tomates,  azeitonas e laranjas. Saímos comendo o farnel pela calçada. Nem blinis com caviar Beluga ou Sevruga seriam mais deliciosos, sobretudo para nós que jamais os provamos, nem teríamos o menor interesse de fazê-lo.

No Japão é falta de decoro alimentar-se na rua, exibindo-se para todos. Mesmo no trem ou metrô, onde carrinhos e barraquinhas de “obentô” são ubíquos, consome-se discretamente num cantinho, sem dar na vista. O pujante panorama de “street food” da Ásia não reverbera naquele país, com exceção das numerosas e desinteressantes  “vending machines”, instaladas em locais abrigados. Sequer em São Paulo, são grandes as  chances de se encontrar na rua um caminhão ou carrinho de comida nipônica.

Na Itália entretanto, com a natural exuberância peninsular, tudo é permitido. Desde matar a fome ostensivamente em  via pública, cantarolando uma ópera, se não comprometer a mastigação e acarretar engasgo,  até evidentemente almoçar à francesa (ou á italiana), numa elegante cantina provida de fina adega. Por um instante  pensei em convidar o Lamardo para lauto banquete. “Noblesse oblige”. Contudo a opção acabou sendo ligeiramente menos nobre ( e dispendiosa), conforme  se aludiu acima.

Mais algumas pernadas, e estávamos no porto. Tomamos a balsa para a ilha de Capri, uma opção bastante óbvia. Desembarcando, não vimos muita coisa. Um par de taxis para a cidade, porém muito caros, em que pesasse a  distância comparativamente curta. Um ladeirão íngreme para o mesmo destino, pouco convidativo diante do sol forte. Muito depois descobrimos que existia um trem funicular, rápido e com módica tarifa . Todavia no porto não havia nenhuma placa a respeito, nenhuma seta indicativa da estação. Sem contar que já tínhamos ideia dos preços exorbitantes, praticados pelos estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços  de Capri.

Diante de tais dilemas, a “grotta azzurra” se afigurou o melhor e mais acessível programa. Tomamos o barquinho ali mesmo, e seguimos para a decantada atração. Como sabido, a fenda na rocha que serve de entrada não ultrapassa um metro de altura. Tal dá direito a uma poderosa “mãozada” na cabeça, aplicada pelo barqueiro em todos aqueles que não encostam o cérebro no piso da embarcação. Faz sentido diante do risco de deixar parte do couro cabeludo, pendurada nas ranhuras de pedra.

No entanto a gruta é linda, e a visita foi compensadora. Retornamos mais leves para o hotel,  sem ressentimentos pela orfandade a que fomos relegados naquele dia.

Não, não há iconografia do passeio. Nenhum dos dois estava munido de câmera. Talvez houvesse valido a pena guardar o ticket de compra dos víveres com que nos abastecemos. Ou o da balsa, e o do barquinho para a gruta, se cogitássemos da posteridade. Efetivamente toda a viagem devesse talvez ser empacotada, trazida de volta, e armazenada num guarda-móveis ou “container” de aluguel.

Parcela não desprezível dos participantes da excursão à Europa, não imaginava refazer tão cedo um itinerário de tal modo extenso e dispendioso, se é que algum dia disporiam de condições financeiras para tanto. Recordo-me que no primeiro hotel em que nos hospedamos, um cinco-estrelas em Genebra à beira do lago Léman, ao que consta cortesia do departamento de turismo suíço, certos colegas tiraram sucessivas fotos. Não apenas do lago, do seu vistoso jato de água, e do antiquado porém simpático barco que realiza um circuito turístico, mas das dependências internas do alojamento

Seria o Hotel Richmond , tal como assinalado no prospecto da época ?  Poucos estabelecimentos conservam o nome ou a aparência, pois  foram  reformados, ou adquiridos pelas grandes redes internacionais. De acordo com as fotos do Google, o Richmond continua independente e com o mesmo nome, todavia a decoração é irreconhecível.  No hotel da viagem os móveis e antiguidades, ainda que não destoantes de estabelecimentos da mesma categoria em outras partes da Europa,  eram de encher os olhos, principalmente para quem jamais havia  desfrutado de tais luxos.

O périplo europeu, pelo menos na ótica dos colegas “sem  milhagem” como eu (os programas de passageiro freqüente logicamente não haviam sido inventados) , preenchia  requisitos de evento  histórico. Como escreveu Mark Twain, o mais famoso romancista norte-americano do século XIX (1836- 1910), “Travel is fatal to prejudice, bigotry and narrow-mindedness”. Nada como uma viagem para debelar  preconceito, intolerância, e visão estreita. Ou seja, expandir e iluminar os horizontes.

Pena que compatível apenas com robusto saldo bancário. Ou uma comissão arrecadadora de grande fôlego e criatividade, chefiada pelo incomparável Eduardo Berger.  Neste diapasão, jamais pus os pés de novo em Napoli ou Capri. Nem cogitaria refazer o circuito estudantil, com exceções científicas pontuais ao longo dos anos , pois estaria distante do meu patamar.

O Lamardo nos deixou, consequentemente não podemos contar com sua confirmação (ou infirmação) , para a narrativa aqui exposta. Também careço de provas materiais, como ventilado há pouco. Quem se atrever a comprá-la, deverá pagar o preço de face. Como apregoavam os  romanos, “caveat emptor”, o freguês que se cuide. Caso alguém possua mercadoria mais autêntica, ou seja depoimento mais verídico, e de procedência comprovada, aceitarei trocas ou devoluções. Até vitupérios, desde que moderados.

1 comment

  1. Flávio Soares de 23 julho, 2019 at 21:22 Responder

    Olá Joel que prazer ler seu relato , divertido , interessante e principalmente escrito num português extremamente elegante . !!
    Adorei !

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