sábado, julho 27

O Professor Edmundo Vasconcelos e suas histórias por Elisabeta Gostinska, Eduardo Berger e Eduardo Roque Verani (e quem mais se habilitar)

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Flagrante da última reunião da 2ª clínica cirúrgica dirigida pelo “velho mestre”

1. Waldomiro de Paula; 2. Sylvio de Barros; 3. Edmundo Vasconcelos; 4. Salomão Azar Chaib; 5. Oscar Cesar Leite; 6. Luiz Paulo Salomão; 7. Sergio Riuzo Dohi; 8. ???; 9. William Abrahão Saad; 10. Sylvio Figueiredo Bocchini; 11. Gaudio Scarabel Nogueira; 12. Pedro Salomão Nahas; 13. Joamel Bruno de Mello; 14. Arnaldo Moreira; 15, Arthur Belarmino Garrido Junior; 16. Desiderio Roberto Kiss; 17. Julio Rafael Mariano da Rocha; 18. Alberto Domingos Filho

1939 (dos anais do Hospital Santa Catarina, em São Paulo)

Da esquerda para a direita, os doutores João de Lorenzo, José Martins Costa e Piragibe Nogueira; na sequencia, os Professores Benedito Montenegro e Edmundo Vasconcelos; e, finalmente, os doutores Reinaldo Neves de Figueiredo e Miguel Leuzzi

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Em 1941, na inauguração do Capítulo de São Paulo do C.B.C Vasconcelos ao lado de expoentes da cirurgia brasileira

 

 

No quadro da sala da Técnica Operatória da Santa Casa: uma frase de próprio punho do Professor Edmundo 

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O BISTURI DE OURO por Elisabeta Gostinska

Na escola, tivemos um professor de Clínica Cirúrgica, Dr. Edmundo Vasconcelos, cirurgião renomado, dedicado, muito organizado e respeitado por todos. Ele costumava subir numa banqueta para poder visualizar melhor as suas cirurgias abdominais.

Conta-se que participou de vários congressos, em vários países, e que levava consigo uma caixinha com um bisturi de ouro para ser ofertado ao melhor cirurgião da época. No retorno de suas viagens, quando se perguntava: “… e então, professor, para quem o senhor deu o bisturi de ouro?”, ele respondia “para mim mesmo, certamente”. Coisas do querido e saudoso professor Edmundo Vasconcelos!


O ESTRADO e o ESPACATE FRONTAL por  Eduardo Berger

Nossa querida Beta, singelamente, nos relatou algo que conhecia do meu “velho chefe”, e estimulou-me a contar, também, umas coisinhas dele. Afinal, ainda que pouco duradouro (três anos), tive com ele um convívio bem estreito. e na categoria “Dos Mestres”, ele merece uma postagem exclusiva.

Fui residente no Hospital das Clínicas, na 2ª Clínica Cirúrgica, onde ele era o chefe e também, participei de diversas cirurgias com ele no recém inaugurado Hospital Gastroclínica, idealizado por ele; logo fui incumbido de organizar o grupo de plantonistas: Berger, Ranoya, Lobo, Egashira, Watanabe, Verani e Julio Mariano da Rocha. Esse grupo se desfez precocemente – ficamos apenas os 3 primeiros. Hoje, no Hospital Edmundo Vasconcelos, só eu de remanescente: Lobo se tornou produtor rural nos anos ’80, Ranoya é lembrado com saudade, desde 11 de agosto de 2012.

Vasconcelos era um cirurgião extremamente habilidoso e profundo conhecedor de anatomia. Na opinião de muitos, o mais brilhante entre todos os expoentes da cirurgia de então. Entretanto, ao lado dessas inegáveis qualidades, carregava outras pouco louváveis: era arrogante, autoritário em demasia, pouco cortês com seus colegas, inclusive os maltratando e humilhando em algumas oportunidades… Certamente, nos dias de hoje, estaria incurso em processos éticos, cíveis e até criminais, relacionados ao assédio moral e constrangimento. Assim, permitam-me uma pequena correção no relato de nossa querida Beta Gostynska: posso garantir que ele jamais “subiu em banquetas e ou estrados”. Apesar de ser bem pequeno, 1,60m de altura, nós, os “grandões”, seus auxiliares, que “nos virássemos”: a mesa cirúrgica ficava ajustada na conveniência do Mestre! Que o diga seu mais assíduo primeiro assistente, o notável Prof Dr Joamel Bruno de Mello – era clássico os residentes e jovens assistentes, sorrateiramente, irem à sala cirúrgica dar uma espiadinha na cena insólita: Vasconcelos à direita, operando naquela mesa baixinha, e à esquerda, Joamel seu auxiliar, sem sapatos e com as pernas em abdução forçada, quase um “espacate de frente” (era o artifício que ele sempre usava!). Me falta o registro fotográfico…


CIRURGIÕES… e IMORTAIS por Eduardo Berger

Eram outros tempos…

Cirurgiões intelectuais. Faziam parte, inclusive, das Academias de Letras: o Professor Vasconcelos ocupava a Cadeira nº 10 da “Paulista”, seu assistente Salomão Azar Chaib, a “Piauiense”, em sua cadeira nº 40! Fatos admiráveis, não exclusivamente pelo mérito de ambos, mas também pelo evidente prestígio que a classe médica tinha na sociedade. Porque naquele tempo eles eram melhores que nós? Pode ser… entretanto, penso que a razão maior é outra: “porque éramos POUCOS”! Desde o ano de 1940 até nossa formatura (1969), a proporção médico/habitante praticamente se manteve em torno de 1/2.000; a partir de então, a proliferação absurda das escolas médicas  havida, propiciou um crescimento tamanho, que essa proporção desabou para 1/450 habitantes. Foi-se embora o prestígio e, por vezes, até o respeito. Pensem nisso…

Os Imortais, Vasconcelos e Chaib, eram, pois, ótimos redatores e excelentes oradores. O “Chefe” era muito vaidoso, e um tanto preguiçoso…gostava muito de “aparecer”, de falar em público mas, frequentemente, pedia ao “Assistente” que escrevesse os discursos que proferiria. Ocorre – lenda ou verdade (?) – que Chaib nutria pelo Vasco um amor fraterno muito, muito intenso, uma admiração quase patológica (com perdão da grosseria, dizem que ele era um “puxa-saco juramentado”!). Estava sempre à disposição para elogiá-lo, servi-lo ou para lhe fazer as vontades… Dizem até que um dia, estavam os dois numa festa, quando passou um garçon oferecendo charutos (outros tempos, mesmo!)…  -“Você fuma, Salomão”?   -“Não, Professor! Agora, se o senhor quiser, posso fumar um”! Gozações não faltavam!

Prof. Edmundo Vasconcelos e seu “fiel escudeiro”, Prof. Salomão Azar Chaib

Voltando aos discursos e à relação entre nossos Imortais: Vasconcelos fora convidado para ser o orador, numa reunião cerimoniosa do Jóquei Clube, onde ele era sócio e frequentava assiduamente. Pediu ao Chaib:: -“Pode escrever um texto para eu ler esta noite no Jóquei”?   -“Claro Professor, com imenso prazer! Qual será o tema?”  -“Discursarei a respeito de emenda à Constituição do deputado Nelson Carneiro, que será votada no Congresso pela enésima vez”!  -“Deixe comigo, Professor, o farei já!”

Se despediram, se afastaram alguns passos, e Chaib saiu com essa pérola: -“Professor! O senhor quer que eu escreva contra ou a favor do divórcio”?

Se non è vero, è ben trovat


ELE ME CHAMOU DE HOMEM por Eduardo Berger

Alguém pode entender um jovem médico, sexo MASCULINO (não por opção, mas por dádiva de D’us) ficar triste ou deprimido, quando fosse“chamado de homem”? Em sã consciência, todos dirão: um total absurdo! Algo sem o menor cabimento, correto? Pois bem, paradoxalmente, isto ocorreu comigo.

“Era uma vez”, no ano de 1971, numa sala cirúrgica do Hospital Gastroclínica: O Professor Edmundo Vasconcelos operava. Seu assistente era o Zwinglio de Oliveira Guimarães (da 49ª turma da FMUSP)- ou seria seu gêmeo, Luthero? (da 50ª) – não faz a menor diferença… ainda que houvesse registro fotográfico do fato, nenhum de nós identificaria (rs)! O 3º elemento, o instrumentador, era um pobre R1 que só tomava porrada, “bronca atrás de bronca” – se o leitor pensa que era eu, acertou na mosca!

Tudo transcorria dentro de uma “normalidade vasconceliana”, ou seja, ele reclamando de tudo, e de todos, quando houve a ocorrência-mote desse relato.

O silêncio na sala é quase absoluto, quebrado apenas pelo vai-e-vem da válvula do respirador; Vasconcelos, num dado momento, mostrando total desinteresse no que estava operando, fica alguns segundos estático, pensativo, instrumentos nas mãos imóveis; só vira os olhos em minha direção, fixa nos meus por um instante; volta a olhar para o campo cirúrgico, ainda com postura de estátua, mais alguns segundos, e novamente me “fuzila” com o olhar e… vem a cena insólita – num movimento brusco, súbito, quase atlético, o “baixinho” mergulha sobre o paciente e a mesa operatória, com os braços estendidos a frente e, com as duas mãos no meu peito, me empurra, ao mesmo tempo em que brada em alto e bom som: -“SAIA, HOMEM”!

Obedeci a ordem do chefe, saí!

Estava muito envergonhado por ter sido expulso da sala, em função do “grave erro” que cometi… mas não vou te contar, leitor amigo – nunca saberás – eu também nunca soube!

Em algumas ocasiões anteriores a esses fatos, presenciei coisas bem parecidas – o Lobo pode confirmar. Meu saudoso irmão Marcus Ranoya, que descanse em paz, também viveu essa realidade. Vasconcelos descia a lenha no instrumentador, sempre aos berros, batendo o pé seguidamente no chão, e com complementos tipo:

“NÃO É ASSIM, MOÇO!!”

“FAÇA DIREITO, MEU JOVEM!”

“MENINO, VAMOS COM ISSO!! SERÁ QUE É TÃO DIFÍCIL!!”.

Entenderam agora?

SAIA, HOMEM! tem uma conotação de definitivo, de incurável… pra mim não haveria remédio! (rs)


O EGO ACIMA DO ESPAÇO SIDERAL por Eduardo R Verani

Transcrição do texto de Fuad Mogames, o Fadú da 46ª turma:

O Professor EDMUNDO VASCONCELOS era um prato cheio para o Show Medicina.
Indivíduo pícnico, brevilíneo, peito enfurnado, vaidoso. Era cercado de histórias, lendas e anedotas.
Assim como o Prof. A. C. Pacheco e Silva, pertencia a Academia Paulista de Letras.
Uma vez assisti a uma demonstração da sua retórica.
Ele dava uma aula, quando entrou o Prof. Arnaldo Sandoval (endocrinologista da EPM) e o saudou:-“Como vai o meu amigo, que já fez dez catedráticos?”
E o Vasco:
-“Hoje meu ego subiu mais alto que os astronautas siderais! Quando o sol frio do amanhã não mais iluminar a face estéril da terra, somente restarão essas vivências do passado”.
A classe quase bateu palmas.


O PIANISTA E O MARTELO por Eduardo R Verani

Ano de 1972. Congresso Brasileiro de Proctologia, em Porto Alegre; estávamos almoçando numa das mesas do restaurante do hotel, o Prof. Vasconcelos, Sylvio Bocchini (que me convidou a sentarmos juntos), Pedro Nahas e eu. Um pianista mostrava sua exuberância, martelando o teclado com ritmos dos anos setenta (o piano estava a três ou quatro metros da nossa mesa). O professor Vasconcelos (trajando um impecável blazer azul marinho, camisa azul claro, calças cinzas e a indefectível echarpe estampada em tons de azul, que me causava grande inveja), dava um ar de contrariado; mostrava-se, a meu ver, puto da vida com o som do piano. Pediu licença, levantou-se, dirigiu-se ao pianista e, educadamente, disse: “Meu jovem, percebo que você gosta de tocar piano e pensa ser um pianista. Quero, entretanto, lembrar-lhe que, além de técnica, é preciso adequação. O senhor está tocando para pessoas que estão almoçando, não fazendo fundo musical para um mágico num circo. Suas marteladas invadem cérebros e confundem a nossa digestão. Num restaurante, cabe tocar Chopin, Debussy, Éric Satie, Sonatas de Beethoven e, quem sabe, canções de Jobim ou “standards” americanos se quiser enveredar no popular, mas nunca essas músicas de circos mambembes. Um pianista, além de saber adequar seu repertório, deve ter feltro nos dedos; o senhor tem martelos, mais próprios para fanfarras escolares. Por  favor, mude suas apresentações ou mude de profissão”.
O pianista ficou estático, embasbacado; as pessoas no restaurante, além de nós, atônitas. O professor voltou a sentar-se e continuamos o almoço, agora ao som de um emocionado “Carinhoso”, seguido de um “Se todos fossem iguais a você”. O Vasco, orgulhoso da reação provocada, encerrou: “Aprendeu rápido, ele é bem razoável. Faço assim até com os residentes, se quiserem ser bons cirurgiões; senão, vão ser enfermeiros”.
Nunca me esqueci disso.

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4 comments

  1. Decio Kerr Oliveira 23 novembro, 2020 at 13:27 Responder

    E aquela historia que o professor teria deixado um paciente aberto sob os cuidados da equipe de auxiliares e anestesistas enquanto atendia outro compromisso, foi verdade ou intriga da oposição?

  2. Marco Antônio V Lobo 10 janeiro, 2021 at 01:26 Responder

    O Vasco era um gênio e, como todos gênios, genioso.
    Para a residência de cirurgia, meu lugar estava garantido: poderia escolher para qual clínica cirúrgica ir – mas eu precisava de um disciplinador… fui para o Vasco.

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