Um belo dia entra em meu consultório uma senhora de uns 50 anos, algo obesa, sorridente. Ela se senta, olha em torno com indisfarçável interesse. Gosta das duas esculturas de madeira. Uma é realmente muito bonita. É de um artista alagoano e representa São Francisco. Is passarinhos estão caídos ao lado, mas o drapeado de sua manta cai de maneira muito suave e elegante. O rosto é bonito. A outra, pouco menor, representa Maria. Não sei qual delas. Sempre ne foi um enigma que uma mãe de Jesus pudesse ter tantas interpretações. Apesar de ser uma escultura bonita, o rosto é grosseiro. Deixo as duas porque gosto delas e foram presentes carinhosos de dous pacientes. Ela também olha as corujas.Felizmente não as reprova, como já me aconteceu. Mas isso é uma outra história. Ela me explica que não veio me consultar. Ela é freira e vem do Vaticano para conversar comigo.Mil coisas me passaram pela cabeça: o Papa precisa de um cirurgião vascular? Veio me trazer um reconhecimento por tantas coisas que eu teria feito pelos pobres e necessitados?
Mas não era nada disso. Ela fazia parte da comissão de canonização do frei Galvão, um padre que tinha vivido na então vila de São Paulo e ao qual se atribuía vários milagres. Ela me perguntou se eu me lembrava de certo paciente que eu tinha operado uns anos atrás. Pelo nome não me lembrava, mas ao abrir a ficha dele, me lembrei na hora!
Ele apresentava uma isquemia grave numa das pernas. A arteriografia identificou obstrução da artéria femoral com reenchimento da poplítea distal. Não seria uma cirurgia difícil. Um by-pass fêmoro-poplíteo com veia safena. Seria fácil se não fosse difícil. É que havia uma calcificação infernal tanto na femoral comum quanto na poplítea. Foi uma cirurgia incrivelmente difícil pois, além disso, a femoral profunda era muito doente. O que normalmente se faz em três horas, levou oito. Oito horas trabalhando numa Área de 25cm quadrados. Um pesadelo. Mas o pós-operatório mostrou que tinha valido a pena. A dor passou como um passe de mágica. As lesões tróficas não doíam mais e logo deram mostras de cicatrização. Uma semana depois foi para casa, no sul de Minas. Voltou para tirar os pontos. Retornou mais algumas vezes. Cada vez estava melhor.
“Então, irmã. Esta é a minha versão da história. Eu lhe digo. Se alguém merece ser santificado por esse caso, eu, sinceramente acho que deveria ser eu mesmo”!
A freira me olhou com olhar divertido. Deu uma bela gargalhada. Despediu-se.
Alguns anos depois frei Galvão foi santificado. Mas o Papa me fez justiça: dentre os milagres que justificavam a santificação de frei Galvão, não constava o de meu paciente. O milagre ficou sendo meu!
Obrigado Santidade.
Foi justo!
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Bonno, este milagre ninguém tira de você. E ninguém tira também a satisfação de ter realizado muitos outros milagres na sua longa carreira. Parabéns meu amigo.